1 – "O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres; enviou-me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano favorável da parte do Senhor" (Lc 4, 18-19). "O Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido" (Lc 19, 10).
No início da Sua vida pública, na sinagoga de Nazaré, e no encontro com Zaqueu, vem ao de cima o propósito e a missão de Jesus: salvar, redimir, curar, ungir, recuperar, libertar. São dois exemplos, mas o evangelho está repleto de encontros, de gestos e de palavras de Jesus que assomam a misericórdia de Deus. Por aqui se compreende também a opção preferencial pelos mais pobres.
2 – Um dos movimentos mais vivos, sobretudo depois do Vaticano II, na América Latina, de onde é originário o atual Papa Francisco, é a Teologia da Libertação que consagra precisamente a opção preferencial pelos pobres. Se é preferencial, não é excludente. A teologia como a pastoral procura responder às situações reais de pobreza e exclusão social, com o empenhamento prático na vida das pessoas. Um dos riscos maiores é reduzir a fé a um puro marxismo, com recurso aos mesmos instrumentos que qualquer estrutura político-partidária, criando novas divisões.
Na Argentina, e assim também o Papa Francisco, adquiriu uma acentuação diferente, reconhecida como Teologia do Povo, com forte influência do Papa de então, Paulo VI. Os pobres são parte da solução, não se trabalha para eles mas com eles. O Beato Óscar Romero, de São Salvador, perfilha a opção preferencial pelos mais pobres, mas sempre em lógica de libertação integral, na abertura ao transcendente. Não se podem mudar as estruturas sem a conversão, sem mudar os corações. Prefere a Teologia da Salvação. Cristo, pela Sua cruz, redime o homem todo.
Em Aparecida, 5.ª Assembleia Geral dos Bispos da América Latina e Caribe, o então Cardeal Jorge Mario Bergoglio (Papa Francisco) coordenou o Documento Final, fixando-se uma vez mais o compromisso social, com a alegria e força do Evangelho, na transformação da realidade, com os excluídos, pobres, escravos, prostitutas, crianças de rua, explorados e espoliados, mulheres, toxicodependentes, procurando envolver os próprios na solução dos seus problemas, vivendo na realidade concreta, entreajudando-se, partilhando as alegrias e tristezas, empenhando-se solidariamente uns com os outros, lutando pela justiça, pela libertação integral, pelos direitos fundamentais, procurando viver ao jeito de Jesus, anunciando-O em todas as situações.
O Papa Bento XVI, na abertura da Assembleia de Aparecida, em 2007, e como outrora havia feito como Prefeito para a Doutrina da Fé, fundamentou a opção preferencial pelos pobres (e a teologia da libertação) com a sua dimensão cristológica. Cristo vem salvar a humanidade e libertar-nos de todas as amarras da escravidão. O modo de ser e de agir de Jesus funda e fundamenta o compromisso dos cristãos, discípulos missionários para este tempo.
3 – O Evangelho hoje proclamado mostra-nos a sensibilidade e o agir de Jesus, sobressaindo a compaixão e a ternura como marcas constantes do Seu ministério de salvação.
Jesus prossegue com o anúncio do Evangelho, por aldeias e cidades. O destino é uma cidade chamada Naim, nome que retemos por causa deste encontro de Jesus com uma viúva que chora pelo seu filho único. Além da profunda tristeza pela morte do seu filho, também o desamparo em que se encontra, por ser viúva. Naquele tempo não havia segurança social ou outro tipo de apoio instituído. Poderia ter a dita de ser acolhida pela família do marido ou por algum dos seus irmãos, já que a esperança média de vida leva a supor que já não teria pais ou os teria por pouco tempo e cujo património passaria para os irmãos. O filho garantiria a sobrevivência, a proteção, o património. A viuvez, sem descendência, expõe-se à pobreza e à mendicidade.
"Ao vê-la, o Senhor compadeceu-Se dela". Esta não é uma atitude isolada, mas o sentir constante de Jesus perante situações de pobreza, doença, isolamento social. Dirigindo-se a ela, diz-lhe: «Não chores». Aproxima-se e toca no caixão, dizendo: «Jovem, Eu te ordeno: levanta-te». O morto sentou-se e começou a falar; e Jesus entregou-o à sua mãe.
Imaginemos que estamos com Jesus junto daquela Mãe. Que sentimos quando a vemos chorosa, a torcer-se de sofrimento? Como nos sentimos com os gestos e as palavras de Jesus? Que poderíamos dizer ou fazer para aliviar o sofrimento daquela Mãe? Como lidamos com o sofrimento de alguém que nos é próximo? Aproximamo-nos e ajudamos o outro a levantar-se? Tocamos-lhe a alma para o resgatar ao medo de ficar sozinho? Com Jesus, Deus visita o seu povo! Como podemos agir para que através de nós Deus possa visitar a nossa família, os nossos colegas de trabalho, os nossos amigos?
4 – A misericórdia de Deus não Se manifesta apenas com a vinda de Jesus. Com Ele chega à plenitude, os céus abrem-se por inteiro, Deus vem em Pessoa, um de nós, um connosco. Mas ao longo das gerações vai-nos falando através dos acontecimentos, dos Patriarcas, Juízes, Sacerdotes, Profetas e Reis, até nos enviar o Seu próprio Filho.
Na primeira Leitura encontramos outra viúva, pobre, visitada por Deus através de Elias. Repare-se que é uma estrangeira, intuindo-se que a benevolência de Deus não se reduz a um grupo, a uma elite ou a um povo! Mais que o lugar ou a religião, importa o coração, a alma, a disponibilidade para acolher, amar e servir. É aqui que se decide a vida e a felicidade!
É enternecedor o diálogo de Elias com Deus. Elias sente-se agradecido pelo acolhimento da viúva com o seu filho. Elias fez tudo conforme Deus lhe sugerira. Mas o filho da viúva de Sarepta adoeceu gravemente e morreu, abalando a sua fé. Descarrega em Elias a frustração, o medo, a tristeza: «Que tens tu a ver comigo, homem de Deus? Vieste a minha casa lembrar-me os meus pecados e causar a morte do meu filho?».
É a vez de Elias fazer o que deve ser feito e o que está ao seu alcance. Reza insistentemente a Deus, lembrando todo o bem que aquela viúva fez: «Senhor, meu Deus, quereis ser também rigoroso para com esta viúva, que me hospeda em sua casa, a ponto de fazerdes morrer o seu filho?».
Deus escutou a voz de Elias e devolveu a vida ao menino. Deus sempre nos ouve, ainda que nem sempre nos responda da forma que estávamos à espera ou que mereceríamos, sabendo que a fragilidade do corpo e da vida se vão manifestando ao longo do tempo, umas vezes com maior benevolência outras com maior agressividade.
É então que definitivamente aquela mulher reconhece quem a visita «Agora vejo que és um homem de Deus e que se encontra verdadeiramente nos teus lábios a palavra do Senhor».
Elias é instrumento da vontade de Deus que nos quer vivos. Com Jesus, chega à plenitude o amor de Deus para connosco, não alijando o sofrimento, mas enfrentando-o e englobando-o na vida, com as suas alegrias e tristezas, para que nada nos impeça de amar, servir, perdoar, ajudar os outros, abrindo-nos, em esperança, as portas da eternidade.
5 – São Paulo escreve às Igrejas da Galácia com o intuito de zelar pelo Evangelho e pela fé em Jesus Cristo, crucificado e ressuscitado. Não vale tudo. Nem todos os caminhos levam a Cristo, nem todas as opções são benfazejas para congregarem e formarem a Igreja como Corpo, como família. Víamos anteriormente que a desencarnação da fé, a espiritualização da religião, a idealização do Evangelho, é uma traição a Jesus que encarnou, assumindo a nossa natureza humana, sujeitando-se às coordenadas do espaço e do tempo. Jesus mostra Deus e a Sua misericórdia infinita, com gestos concretos, palavras e obras. Nem tanto à terra nem tanto ao mar. A certeza da eternidade não nos permite enlevar-nos, pelo contrário, mais nos compromete com a transformação do mundo.
Por um tempo podemos pregar um evangelho feito à nossa medida, mas será uma mentira. A Igreja não é minha, não é nossa, é de Cristo, como bem sublinhava Bento XVI no anúncio da renúncia ao ministério petrino.
O Apóstolo Paulo lembra-nos que o Evangelho não é negociável nem está sujeito ao critério de cada um, ainda que em cada tempo tenhamos que procurar o sensus fidei, a fé vivida em cada contexto social e humano, procurando que o Evangelho ilumine a vida.
"O Evangelho anunciado por mim não é de inspiração humana, porque não o recebi ou aprendi de nenhum homem, mas por uma revelação de Jesus Cristo... Quando Aquele que me destinou desde o seio materno e me chamou pela sua graça, Se dignou revelar em mim o seu Filho para que eu O anunciasse aos gentios, decididamente não consultei a carne e o sangue". Paulo revela que a primeira coisa que fez após a conversão foi retirar-se para o deserto, ao jeito de Jesus, para que fosse mais forte a ligação a Deus, pela oração. Depois subiu a Jerusalém para estar com Simão Pedro, tendo encontrado também Tiago, irmão do Senhor. Apesar das convicções resolutas do Apóstolo, a ligação e a comunhão com a Igreja na pessoa de São Pedro.
Pe. Manuel Gonçalves
Sem comentários:
Enviar um comentário