segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

EMMA DONOGHUE - O QUARTO DE JACK

EMMA DONOGHUE (2018). O Quarto de Jack. Porto: Porto Editora. 336 páginas.
Jack acaba de fazer 5 anos. Apaga as velas. Festeja mais um aniversário. Até ao final dos quatro anos, Jack só conhece uma realidade, um quarto, onde dorme, come, mama, brinca, faz desporto, aprende a ler e a escrever, tem 5 livros para ler, conhece personagens na televisão, que não são reais. Pessoas só ele e a mãe e o Nick Mafarrico, que vem à noite, mas como fica escondido no guarda-fatos, não o vê, só houve barulho, respiração e algumas palavras, isto quando não está a dormir. Depois do Nick sair volta para a cama para junto da mãe.
Feitos os 5 anos, a mãe começa a desmontar as mentiras que foi criando para o manter, para se manterem em segurança. O mundo Lá Fora afinal existe, existem humanos verdadeiros, a televisão mostra pessoas verdadeiras e outras personagens que não existem. É necessário fugir. Arranjar um plano de fuga. O Quarto revela ser uma prisão, de onde não podem sair. O Mafarrico tranca a porta com um código, o quarto é insonorizado. Podem gritar que ninguém os ouvirá. A mãe foi raptada aos 19 anos. Nessa altura, tinha mãe e pai (adotivos), tinha amigos, tinha outra vida, mas foi enganada e entrou numa carrinha e deixada ali naquele Quarto. A Mãe engendra um plano para fugir, tendo como protagonista Jack, irão ludibriar o Nick Mafarrico.
Ainda que o plano não decorra como esperado, com todos os passos imaginados, resulta na libertação de Jack e da Mãe. Nick é preso e aguarda julgamento, esperando-se que nunca mais saia da cadeia.
A vida no mundo Lá Fora é diferente, tem outras regras, tem outros humanos. Precisam de ir para uma clínica, a comunicação social quer devorar a história. Há muitas coisas diferentes. Jack tem saudades do Quarto, onde é ele e a Mãe, aqui há outros eles, que afinal são verdadeiros. Precisam de se adaptar rapidamente, à luz, ao som, a conhecer pessoas e lugares. Tanta informação que é difícil assimilar. Curiosamente quem é atropelada pela realidade é a Mãe, que quer ir mais cedo para o Céu. A avó materna e o Avô emprestado, os tios e a prima, vão ser de grande ajuda. Jack continua a querer o Quarto.
Jack não precisa de muito, precisa da Mãe. Não precisa de muito mais. Tem medo da chuva. E que lhe toquem ou o abracem. Só precisa do colo da mãe. Quando a mãe não está, ele tem o dente podre da mãe, que guardou e mete na boca, para chupar, pois assim tem um pedaço da mãe. O dente foi com ele na fuga, mantém-no até que a mãe volta da Clínica. Depois perde-o. Já não tinha sabor nenhum. Quer os brinquedos e livros que tinha no Quarto. E o tapete, mesmo com o cheiro que trazia do Quarto. A mãe quer fazer desaparecer esses objetos e esses cheiros, mas por insistência do filho regressa ao Quarto, que afinal já não é o mesmo Quarto, parece mais pequeno. Jack despede-se do Quarto, das paredes, do teto, como se estivesse a despedir-se de pessoas.
Este é um livro extraordinário. Lê-se de fio a pavio, faz-nos tocar a realidade de tantas pessoas vítimas de rapto, cujas vidas foram destruídas ou feridas para sempre, fala-nos da ternura e do amor, da Mãe e do Filho, e da resiliência, mas também da fragilidade humanas. É possível ter muito pouco e resistir a tudo, por amor. É possível ter muito e perder-se.
A voz que narra toda a trama é a voz de uma criança, de Jack, que nos surpreende com a sua ingenuidade, mas também com a capacidade de ouvir e perceber das crianças, mesmo quando os adultos pensam que os mais pequenos não ouvem e/ou não percebem. Fala-nos de um amor tão grande, gigante, que não precisa de muitas coisas. Jack só precisa do amor, do olhar, do colo da mãe. Tudo o mais é secundário. Mas mesmo no mundo Lá Fora, continua a precisar da Mãe, do amor e da presença da Mãe. A mãe é salva, em todos os sentidos, pelo filho, pelo amor do filho, ainda que tenha sucumbido alguns dias depois de estarem no mundo Lá Fora, não aguentando a pressão, a novidade. Mas também aí, o amor parece ter levado a melhor. Resistiu a tudo, tornou-se cínica, deixou de (aparentemente) lutar contra o agressor, mas para proteger o filho e, assim, também se protegeu. Quando já não precisava de resistir, vacilou na incerteza, na insegurança, na novidade.
Não recomendaria uma leitura que não me tivesse cativado do início ao fim. É uma escrita criativa, simplificada pelas palavras de uma criança de 5 anos, envolvente, do início ao fim. E, como sabemos, ainda que a ficção seja muito realística, infelizmente, a realidade ultrapassa sempre a ficção, havendo casos de sucesso, mas havendo muitos outros cujo desfecho foi a escravidão para sempre ou a morte.

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