1 – Quando nos damos conta que Jesus não segue connosco, como é que reagimos?
Podemos até nem perceber que Jesus já não vai connosco e já não há chama, nem vida nova, nem mobilização interior, nem compromisso solidário. O que pode suceder na vida pessoal, na vivência da fé, quando esta não é mais que o escrupuloso cumprimento do dito dever de cristão, na esmola que se dá, ou na tradição inalterável que seguimos sem interrogar o seu sentido ou a sua finalidade.
Uma pequena estória:
Num jardim público estavam dois soldados a guardar um banco, não deixando que ninguém se sentasse. Passaram milhares de pessoas, durante anos a fio. Os soldados faziam o seu turno e eram rendidos por outros. Um dia um homem, a transpirar de esforço, procurou um banco que estivesse disponível e só encontrou vago aquele que era guardado pelos militares. Insistiu para que o deixassem descansar um pouco. Não adiantou. Tinham ordem para não deixar sentar ninguém. Mas não fazia sentido. Era um banco de jardim igual a todos os outros. Os sentinelas, depois do respetivo turno, intrigados, decidiram tirar tudo a limpo. Ninguém sabia, nem os mais graduados. Era uma rotina que tinha anos. Todos os dias na ordem de serviço estava a guarda ao banco de jardim. Pesquisaram nos arquivos e verificaram que tinha sido um pedido da junta de freguesia, que tinha mandado pintar os bancos e tinha pedido ao quartel para fazerem barreira àquele banco para que ninguém se sentasse com a tinta fresca e estragasse a roupa. Era por algumas horas. Ninguém mais se interrogou, nem as classes dirigentes, nem os soldados, nem os transeuntes. E afinal a razão de ser da sentinela ao banco de jardim já não tinha sentido há muito, muito tempo.
Bento XVI propõe-nos o ANO da FÉ, na procura do fundamento, do sentido, da matriz da fé. O que nos move. O que nos diz Jesus. O que é roupagem e o que é essencial. Em que Deus acreditamos? Quem segue connosco no caminho? Como testemunho Jesus se nem sei se Ele ainda está nas minhas escolhas?
2 – Na festa da Sagrada Família, é-nos proposta mais uma pérola do Evangelho de São Lucas. Por volta dos 12 anos, José e Maria levam Jesus a Jerusalém, ao Templo, como faziam cada ano pela Páscoa. Mas esta era uma Páscoa diferente. Entrado nos 12 anos, Jesus passava a ler a Sagrada Escritura em público. Esta seria a sua primeira vez. Doravante, podia discutir os vários temas da Bíblia, já não era a criança excluída. Chegara a idade de também ele se interrogar sobre os fundamentos da fé e de se preparar (a partir dos 13 anos) para cumprir com a Lei, de se apresentar no Templo nas 3 festas principais: Páscoa, das Semanas (Pentecostes) e das Cabanas.
Vale a pena ler com atenção o relato de São Lucas e descobrir como a Sua família teve um papel preponderante na sua educação, na inserção na comunidade, e numa atitude de diálogo, de confiança e de compreensão:
“Os pais de Jesus iam todos os anos a Jerusalém, pela festa da Páscoa. Quando Ele fez doze anos, subiram até lá, como era costume nessa festa. Quando eles regressavam, passados os dias festivos, o Menino Jesus ficou em Jerusalém, sem que seus pais o soubessem. Julgando que Ele vinha na caravana, fizeram um dia de viagem e começaram a procurá-l’O entre os parentes e conhecidos. Não O encontrando, voltaram a Jerusalém, à sua procura. Passados três dias, encontraram-n’O no templo, sentado no meio dos doutores, a ouvi-los e a fazer-lhes perguntas. Todos aqueles que O ouviam estavam surpreendidos com a sua inteligência e as suas respostas. Quando viram Jesus, seus pais ficaram admirados; e sua Mãe disse-Lhe: «Filho, porque procedeste assim connosco? Teu pai e eu andávamos aflitos à tua procura». Jesus respondeu-lhes: «Porque Me procuráveis? Não sabíeis que Eu devia estar na casa de meu Pai?». Mas eles não entenderam as palavras que Jesus lhes disse. Jesus desceu então com eles para Nazaré e era-lhes submisso. Sua Mãe guardava todos estes acontecimentos em seu coração. E Jesus ia crescendo em sabedoria, em estatura e em graça, diante de Deus e dos homens”.
3 – Só Deus é Deus. Só Deus deverá ser considerado Deus. E Deus tem sempre o primeiro lugar. Assim no-lo mostra Jesus, sem que isso implique desobediência aos pais, ou fuga às responsabilidades mundanas, familiares e/ou profissionais.
Este episódio é conhecido, e reproduzido nos mistérios do rosário, por “perda e encontro de Jesus no Templo entre os doutores da Lei”. Fica desde logo claro que Maria e José O perderam pelo caminho. São pessoas, não são Deus. Podia acontecer a qualquer família. Acontece-lhes. A caravana em que seguia a família, seria constituída por muitas pessoas, pelos vários familiares, e pelos conterrâneos, viajam juntos, protegendo-se melhor dos salteadores.
Pelos 12 anos, as crianças ganhavam a liberdade de se juntar aos da sua idade, e viajarem juntos. À noite regressavam para os pais. Nessa ocasião, Maria e José deram-se conta que Jesus não se encontrava na caravana. Tinham feito um dia de viagem para norte. Viajam outro dia de regresso a Jerusalém e encontram Jesus ao terceiro dia (pode ser já uma imagem da ressurreição, Jesus aparece/ressuscita ao terceiro dia).
A perda de Jesus, lido o texto com atenção, não exprime primeiramente a Sua desobediência, mas a prioridade da missão: primeiro as coisas de Deus. Mostra como a família de Jesus é profundamente religiosa. Todos os anos vai ao Templo. José é um homem justo, face à Lei, cumpridor dos requisitos da Torah. A família segue a tradição dos antigos. Veja-se a conjugação entre liberdade e obediência. Maria e José não podiam prever a opção de Jesus, não são Deus. Jesus esclarece a prioridade.
4 – Mas há outros elementos que importa sublinhar. Maria e José dão-se conta que Jesus não está com eles no caminho e imediatamente voltam à sua procura. E nós, quando nos apercebemos que Deus não está nas nossas escolhas, regressamos para O encontrar e trazer de volta à nossa vida?
A família protege os seus membros. Por isso é família. Maria e José deixam o caminho para procurar Jesus. Um dia será Jesus a sair do caminho, para encontrar os descaminhados, os que estão à margem, fora do caminho, fazendo-os regressar…
Chegam perto de Jesus, e não discutem com Ele, mostram a preocupação e perguntam-lhe pela razão de ter procedido daquele modo. Mais uma lição importante para pais, para educadores, para a forma como lidar uns com os outros. Perguntar. Escutar as razões dos outros. Tentar compreender o porquê de determinada atitude.
No mesmo registo, a epístola de São Paulo aos Colossenses com as seguintes recomendações:
"Revesti-vos de sentimentos de misericórdia, de bondade, humildade, mansidão e paciência. Suportai-vos uns aos outros e perdoai-vos mutuamente, se algum tiver razão de queixa contra outro... Acima de tudo, revesti-vos da caridade, que é o vínculo da perfeição. Reine em vossos corações a paz de Cristo, à qual fostes chamados para formar um só corpo... E tudo o que fizerdes, por palavras ou por obras, seja tudo em nome do Senhor Jesus, dando graças, por Ele, a Deus Pai. Esposas, sede submissas aos vossos maridos, como convém no Senhor. Maridos, amai as vossas esposas e não as trateis com aspereza. Filhos, obedecei em tudo a vossos pais, porque isto agrada ao Senhor. Pais, não exaspereis os vossos filhos, para que não caiam em desânimo".
Ainda que a linguagem possa ser instrumentalizada, fica claro, que o importante é proceder como Jesus, amar, perdoar, tratar os outros com delicadeza, com bondade, colocando os outros em primeiro lugar.
5 – Voltemos uma vez mais à narrativa evangélica.
Maria, José e Jesus voltam juntos para casa. São família na festa e na dificuldade. Maria e José não deixam o filho para trás. Perderam-no e vão procurá-lo. Não exasperam. Interrogam e deixam que Ele explique. Não percebem muito bem. O que Jesus lhes diz ultrapassa a sua compreensão humana. Mas agora é tempo de recuperar caminho, de regressar a casa. Maria (e José com ela) guarda todas aquelas coisas no coração, medita-as. Jesus não contesta a “repreensão” de Maria. Regressa com os pais, em atitude filial, obediente, crescendo com eles em graça e sabedoria.
Ao carinho, amor e cuidado dos pais pelos filhos há de corresponder o respeito, a escuta, a obediência, o amor e o cuidado dos filhos pelos pais. Bem Sirá, inspirado pelo Espírito de Deus, deixa-nos uma preciosidade:
“Deus quis honrar os pais nos filhos e firmou sobre eles a autoridade da mãe. Quem honra seu pai obtém o perdão dos pecados e acumula um tesouro quem honra sua mãe. Quem honra o pai encontrará alegria nos seus filhos e será atendido na sua oração. Quem honra seu pai terá longa vida, e quem lhe obedece será o conforto de sua mãe. Filho, ampara a velhice do teu pai e não o desgostes durante a sua vida. Se a sua mente enfraquece, sê indulgente para com ele e não o desprezes, tu que estás no vigor da vida, porque a tua caridade para com teu pai nunca será esquecida e converter-se-á em desconto dos teus pecados”.
Amar. Eis o mandamento divino. Colocar Deus em primeiro lugar, e n'Ele a ligação essencial aos outros, aos pais, aos filhos, aos irmãos, aos vizinhos. Amar Deus, amando os que estão perto de nós. Como sublinhou Bento XVI, na noite de Natal, “Se a luz de Deus se apaga, apaga-se também a dignidade divina do homem. Então deixamos de ser, todos, irmãos e irmãs, filhos do único Pai que, a partir do Pai, se encontram interligados uns aos outros”.
Textos para
a Eucaristia (ano C): Sir 3, 3-7.14-17a; Col 3, 12-21; Lc 2, 41-52.
Reflexão Dominical na página da Paróquia de Tabuaço
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