1 – A criança precisa de ver, de sentir o corpo da mãe, a mão do pai, precisa de ouvir vozes que lhe deem segurança. Pode não saber falar, pode não perceber o que se diz, mas sente a palavra, o toque, vê rostos que lhe são familiares. Sem articular palavras ou pensamentos elaborados, relaciona-se com o mundo, com as pessoas à sua volta, precisa de pessoas por perto, chama por elas da maneira como pode, com um sorriso, um balbuciar, uma gritaria.
A celebração do Corpo de Deus vem da Idade Média e da necessidade da Igreja Católica reafirmar a presença de Jesus Cristo na hóstia e no vinho consagrados. Jesus, no mistério da Sua misericórdia, coloca-Se por inteiro, pelo Espírito Santo, no pão e no vinho. Uma presença não visível mas real, como é real mas não visível o amor, o que nos liga uns aos outros e nos faz querer ser vistos, reconhecidos e amados uns pelos outros.
Primeiramente, a elevação da hóstia consagrada, para que todos contemplassem o mistério que ali se realizava. Por outro lado, se Jesus está no pão consagrado, Ele permanece Eucaristia depois da celebração da mesma e não apenas durante a liturgia. É claramente a fé católica. O pão eucarístico pode levar-se aos doentes, aos presos, pois permanece Corpo de Cristo. Pode adorar-se em toda a parte, na Igreja, na rua ou em casa a quem é levado. Jesus sacramentado permanece entre nós, nos sacrários das nossas igrejas. Também aqui a fé do povo (sensus fidei) é significativa na delicadeza com que se aproxima do sacrário, o adorna, zela para que a lamparina não se apague nunca, nem de dia nem de noite, indicando que ali se encontra a verdadeira LUZ e a VIDA verdadeira, ali se encontra Aquele que deu a vida por mim e por ti, e vela por todos.
Todos precisamos de saber e de sentir que alguém olha por nós. Precisamos de ouvir, de ver, de abraçar, de tocar. Um dia São João Maria Vianney, o Santo Cura d'Ars, interrogou um camponês, que todos os dias entrava na Igreja e não mexia os lábios, sobre o que dizia a Deus. A resposta é sintomática: não digo nada, Ele olha para mim e eu olho para Ele.
2 – Em Cristo, Deus faz-Se como nos fez, verdadeiro HOMEM, limitado e finito, visível e concretizável num CORPO como o nosso. Nasce de uma Mulher – a Imaculada Virgem Maria – a quem Se liga pelo cordão umbilical como qualquer um de nós em relação às nossas mães. Liga-Se primeiramente pelo corpo, dentro de outro corpo, alimentando-Se desse corpo materno e sendo protegido enquanto Se prepara para vir ao mundo.
Não quiseste sacrifícios, formaste-Me um Corpo. Eu venho ó Deus para fazer a Tua vontade (cf. Heb 10, 5-10).
Esta intuição está presente no Antigo Testamento, num desafio crescente para que os sacrifícios sejam substituídos pela conversão, pela justiça, pela prática do bem. «Oferecer-Vos-ei um sacrifício de louvor, invocando, Senhor, o vosso nome. Cumprirei as minhas promessas ao Senhor, na presença de todo o povo» (Salmo).
As práticas religiosas aproximam-nos uns dos outros e identificam-nos como povo diante de Deus. Comprometem-nos com o mesmo Deus, levam-nos a cuidar uns dos outros.
Na primeira leitura, vemos como Moisés, depois de pôr por escrito as palavras do Senhor, ordena a oferenda de holocaustos e sacrifícios, imolando novilhos. Diz-nos o autor sagrado que Moisés derramou o sangue dos novilhos sobre o altar, depois leu, em voz alta, o Livro da Lei ao povo e sobre este aspergiu a outra metade do sangue recolhido, dizendo: «Este é o sangue da aliança que o Senhor firmou convosco, mediante todas estas palavras».
O rito não é mágico, operando o que quer que seja, mas promove a vivência dos mandamentos da Lei: «Faremos quanto o Senhor disse e em tudo obedeceremos».
Veremos como Jesus leva à plenitude o sacrifício e a própria Lei.
3 – O povo judeu celebra a festa da Páscoa assinalando a passagem da escravidão à terra nova da promessa e da liberdade. Fá-lo de modo semelhante ao de Moisés, imolando o cordeiro pascal, recordando os feitos de Deus a favor de todo o povo. Aos mais novos são lembradas as maravilhas que Deus operou, desafiando-os a agradecer-Lhe, mantendo-se no Seu caminho.
Jesus e os seus discípulos, como judeus, seguem as tradições de seus pais. Mas algo está para acontecer. Dois dos discípulos vão adiante e preparam o que é necessário para comer a Páscoa. Longe de imaginarem que esta seria uma Páscoa diferente, provisória e antecipadora da verdadeira Páscoa, a morte e a Ressurreição de Jesus. O sangue de Jesus selará uma nova Aliança.
“Enquanto comiam, Jesus tomou o pão, recitou a bênção e partiu-o, deu-o aos discípulos e disse: «Tomai: isto é o meu Corpo». Depois tomou um cálice, deu graças e entregou-lho. E todos beberam dele. Disse Jesus: «Este é o meu Sangue, o Sangue da nova aliança, derramado pela multidão dos homens. Em verdade vos digo: Não voltarei a beber do fruto da videira, até ao dia em que beberei do vinho novo no reino de Deus». Cantaram os salmos e saíram para o monte das Oliveiras”.
Jesus prepara a ausência do Seu corpo com a promessa e a certeza da Sua presença no pão e no vinho, sempre que em Seu nome nos reunirmos, invocando de Deus Pai o Espírito Santo. Ele estará sempre connosco até ao fim dos tempos, se vivermos em Sua memória, imitando-O.
O culto provisório de Moisés, passa a pleno e definitivo em Jesus, o sumo-sacerdote por excelência, que “não derramou sangue de cabritos e novilhos, mas o seu próprio Sangue, e alcançou-nos uma redenção eterna. Na verdade, se o sangue de cabritos e de toiros e a cinza de vitela, aspergidos sobre os que estão impuros, os santificam em ordem à pureza legal, quanto mais o sangue de Cristo, que pelo Espírito eterno Se ofereceu a Deus como vítima sem mancha, purificará a nossa consciência das obras mortas, para servirmos ao Deus vivo!”
4 – Quando precisa de sair ou de fazer alguma coisa e vê que o filho começa a fazer beicinho, a choramingar, a mãe arranja um brinquedo que possa colmatar a sua ausência. Cristo deixa o Seu corpo no pão e no vinho para estar sempre connosco, com o claro convite a acreditarmos mesmo que não O vejamos fisicamente (cf. Jo 20, 29).
Mas não é fácil, ou pelo menos, não é garantido. Veja-se a pergunta de Maria ao Anjo: como será isso se eu não conheço Homem? (cf. Lc 1, 34). Pressupõe a importância do Corpo, isto é, da pessoa, da relação corporal com o outro. Do mesmo jeito a morte de um familiar ou amigo. O que dói mais é a ausência do corpo, e por isso se retém o corpo o mais tempo possível, pois é a lembrança, a visualização sensível da pessoa e da sua presença connosco, ainda que a fé nos garanta a sua permanência espiritual, sobretudo na oração. Ou então, a ausência de um corpo para fazer o luto, um desaparecido, um náufrago, uma vítima de acidente aéreo. A dor é muito mais intensa do que diante de um corpo, ainda que morto e/ou desfigurado.
Outra situação que nos remete para a importância do Corpo e do inteiro Corpo de Jesus: a pessoa a quem foi amputado um braço ou uma perna e que sente e visualiza afetivamente o braço ou a perna. Ou o caso das pessoas que ainda "veem" os seus entes queridos, quando se dão conta estão a falar com eles, a colocar um prato na mesa, a ir à sala ver se já chegou, a sentir o seu odor…
Não há outra maneira mais humana e sensível de estar entre nós que não seja através do Seu Corpo, a Sua vida por inteiro. E Jesus, mesmo antes de morrer, deixa claro que a morte não O retirará aos Seus discípulos, Ele estará sempre com eles, nada O separará daqueles que O invocam e O querem tornar presente. Por isso nos deixa por herança maior o mistério da Sua presença no Corpo e no Sangue que agem pelo Espírito Santo nas espécies do pão e do vinho.
5 – Rezemos ao Senhor com a oração da Eucaristia desta solenidade e tantas vezes rezada na Adoração do Santíssimo Sacramento: «Senhor Jesus Cristo, que neste admirável sacramento, nos deixastes o memorial da vossa paixão, concedei-nos a graça de venerar de tal modo os mistérios do vosso Corpo e Sangue que sintamos continuamente os frutos da vossa redenção».
A celebração da presença de Cristo na Eucaristia Se faça presença na nossa vida quotidiana.
Pe. Manuel Gonçalves
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