terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Mensagem de D. António Couto para a Quaresma 2017

1. «O outro é um dom», «o pecado cega-nos», «a Palavra é um dom», são, por esta ordem, os subtítulos ou fios condutores com que o Papa Francisco costurou a sua mensagem para esta Quaresma de 2017 que agora se inicia. Entre «dom» e «dom», o pecado, que é uma espécie de nó cego no coração, bloqueia-nos num mundo de portas fechadas a cadeado, tornando-nos imunes, isto é, vacinados, indiferentes, insensíveis, face aos outros e face à Palavra, aquela que vem de Deus, Palavra criadora e carinhosa, e aquela que vem dos outros, da ternura dos outros, mas também das suas dores, sofrimentos e gritos.

2. Sim, o dom é primeiro. A Palavra criadora de Deus está antes das coisas, da história e de mim. Ou não seria Palavra criadora! E ainda antes de mim estão outras mãos que me acolhem com carinho. É suficientemente claro que não fui eu o primeiro a chegar aqui. Diz Deus para Baruc e para mim: «Tu procuras para ti coisas grandes! Não procures! Porque eis que Eu farei vir a desgraça sobre toda a carne, oráculo do Senhor. Mas darei a ti a tua vida como despojo em todos os lugares para onde fores» (Jeremias 45,5). E João, o Batista, aponta a cada um de nós a fonte da vida e do dom, afirmando: «Um homem nada pode receber, a não ser que lhe tenha sido dado do céu» (João 3,27). E São Paulo deixa a retinir nos nossos ouvidos a pergunta essencial: «Que tens tu que não tenhas recebido?» (1 Coríntios 4,7).

3. No Tratado Pirqê ’Abôt (2,9), da Mishna judaica, Yohanan ben Zakai pergunta aos seus discípulos: «Qual é o caminho mau de que o homem se deve afastar?». E Rabi Simeão respondeu: «Pedir emprestado e não restituir». Mas acrescenta logo que «é a mesma coisa receber emprestado de um homem ou de Deus». E o grande filósofo hebreu Abraham Joshua Heschel comenta de forma certeira e incisiva: «Talvez esteja aqui o núcleo da miséria humana: quando nos esquecemos de que a vida é um dom e também um empréstimo».

4. Em boa verdade, quando dou por mim, já tenho coisas atrás, já estou sempre depois do meu nascimento, já tenho um pai e uma mãe, já sou filho. E reconhecer-me filho é descobrir-me como receção originária da vida, proveniente de um amor que me precede. Verdadeiramente, quando começamos a dar por nós, o espanto primeiro que nos invade não é o mundo, mas alguém que começamos a ver diante de nós. Alguém: o dom de outras mãos que amorosamente se estendem para nós. «A primeira experiência da pessoa, diz bem Emmanuel Mounier, é a experiência da 2.ª pessoa: o tu, e, portanto, o nós, vem antes do eu». O «bom dia» precede o «cogito». Nós não somos incestuosa e tautologicamente filhos de nós mesmos, como requer o célebre «cogito ergo sum» [= «eu penso, logo existo»] cartesiano ou o faraónico «ego feci memetipsum» [= «eu fiz-me a mim mesmo»] (Ezequiel 29,3). Eu não sou a origem, o senhor e o centro do mundo. «Eu» dou por mim como «eis-me-aqui», como tantas vezes na Bíblia se vê e ouve.

5. Um dom imenso nos precede. Mas o dom é sempre frágil. É como um vaso cheio de afeto, que se quebra logo que o recebedor o comece a considerar como seu. Na verdade, não se possui senão para se perder, e só não se perde o que se dá. Aproveitemos então, caríssimos irmãos e irmãs, este tempo santo da Quaresma para fazer a experiência de tudo receber de Deus e tudo partilhar com alegria com os nossos irmãos, na certeza de que «Deus ama quem dá com alegria» (2 Coríntios 9,7; cf. Atos 20,35; Tobias 4,16).

6. Façamos pois, amados irmãos e irmãs, do tempo da Quaresma um tempo de diferença, e não de indiferença. Dilatemos as cordas do nosso coração até às periferias do mundo, e que o nosso olhar seja de Misericórdia para os nossos irmãos de perto e de longe. Façamos um exercício de verdade. Despojemo-nos, não apenas do que nos sobra, mas também do que nos faz falta. Dar o que sobra não tem a marca de Deus. Jesus não nos deu coisas, algumas coisas para o efeito retiradas da algibeira, mas deu por nós a sua vida inteira. Dar-nos uns aos outros e dar com alegria deve ser, para os discípulos de Jesus, a forma, não excecional, mas normal, quotidiana, de viver. Como em anos anteriores, peço aos meus irmãos e irmãs das 223 paróquias da nossa Diocese de Lamego para abrirmos o nosso coração a todos os que sofrem aqui perto e lá longe.

7. Neste sentido, vamos destinar uma parte da esmola da nossa Caridade quaresmal para o Fundo Solidário Diocesano, para aliviar as dores dos nossos irmãos e irmãs de perto que precisam da nossa ajuda, e são cada vez mais. Olhando para os nossos irmãos e irmãs de longe, vamos destinar outra parte do esforço da nossa Caridade para levar um pequeno gesto de carinho aos nossos irmãos e irmãs da África e da América Latina, mais concretamente de Moçambique e da Bolívia, países em que os Missionários Espiritanos têm missões que necessitam do nosso apoio. O motivo de este ano canalizarmos a esmola da nossa Caridade através dos Missionários Espiritanos reside no facto de a Província Portuguesa dos Missionários Espiritanos estar este ano de 2017 a celebrar 150 de presença em Portugal. Este caminho da nossa Caridade Quaresmal será anunciado, como de costume, em todas as Igrejas da nossa Diocese no Domingo I da Quaresma, realizando-se a Coleta no Domingo de Ramos na Paixão do Senhor.

8. Com a ternura de Jesus Cristo, saúdo, no início desta caminhada quaresmal de 2017, Ano do Centenário das Aparições de Nossa Senhora em Fátima, todas as crianças, jovens, adultos e idosos, catequistas, acólitos, leitores, salmistas, membros dos grupos corais, ministros da comunhão, membros dos conselhos económicos e pastorais, membros de todas as associações e movimentos, departamentos e serviços, todos os nossos seminaristas, todos os consagrados, todos os diáconos e sacerdotes que habitam e servem a nossa Diocese de Lamego ou estão ao serviço de outras Igrejas. Saúdo com particular afeto todos os doentes, carenciados e desempregados, e as famílias que atravessam dificuldades. Uma saudação de particular carinho a todos aqueles que tiveram de sair da sua e da nossa terra, vivendo a dura condição de emigrantes.

9. Que o Deus da Paz nos conceda uma abundante chuva de Graça e de Ternura, e que Maria, nossa Mãe, Senhora do Rosário de Fátima, seja nossa carinhosa Medianeira.

Lamego, 01 de março de 2017, Quarta-feira de Cinzas
Na certeza da minha oração e comunhão convosco, a todos vos abraça o vosso bispo e irmão,
+ António.

VL – Autoridade Jesus e dos discípulos: amor e serviço

       A lei do amor não torna mais fácil a nossa vida. Jesus não revoga os preceitos da Lei de Moisés. Não tem o propósito de alijar, iludir, facilitar, mas de elevar, aperfeiçoar, plenizar. Jesus é a Carne viva da Lei, o Corpo e a Vida. Mas a carne, o corpo e a vida são delicados e temos que os tratar como tal, com delicadeza e cuidado, prestando a máxima atenção para não ferir, não magoar, para não danificar. Quando cuidamos da carne do outro, do seu corpo e da sua vida, estamos a entrar no seu mundo, estamos a reconhecê-lo como parte essencial do nosso mundo. Quando tocamos as feridas e as chagas do outro, como nos lembra a Santa Teresa de Calcutá, tocamos os ferimentos de Jesus.
       Não precisamos de leis nem de regras, desde que amemos de todo o coração! Por certo! Como diria Santo Agostinho, ama e faz o que quiseres! Só que quem ama cuida, sofre, ampara, acolhe, serve, acarinha, gasta-se, respeita, dá-se, entrega-se. A não ser que amar seja apenas uma palavra dita da boca para fora e gasta pelo muito e/ou mau uso da mesma. A não ser que amar seja apenas gozar, sentir prazer, tirar proveito do outro, servir-se do outro enquanto é útil e satisfazer os próprios interesses e caprichos. Amar exige muito de mim. Exige tudo. Não se ama a meio termo, a meio gás, com condições ou reservas. A vida não é branco e preto, também é cinzenta e vermelha, castanha e amarela. No entanto, ou se ama ou não se ama. “Amar muito” não acrescenta, já está dentro do amar. Amar exige tudo de mim e de ti. Exige que gastemos as forças, o corpo e o espírito a favor do outro, de quem, pelo amor, me faço próximo, me faço irmão. Amar é dar a vida. É gastar a vida. É confiar ao outro a própria vida. Foi isso que Jesus fez connosco, comigo e contigo, com a humanidade inteira. Por amor, gastou-Se até à última gota de sangue.
       É o amor e o serviço que nos salvam, permitindo-nos sair potenciar o melhor de nós, como filhos bem-amados de Deus e acolher tudo o bem que vem de Deus através dos outros.
       As palavras de Jesus entram-nos pelos ouvidos dentro até chegarem ao coração. Outrora poderíamos ainda ter desculpas, não saber, estarmos a caminhar e a amadurecer. Mas agora é tempo de viver, de amar e servir.

Publicado na Voz de Lamego, n.º 4400, de 21 de fevereiro de 2017

A oferenda do justo enriquece o altar

       "Cumprir a lei equivale a muitas oferendas, ser fiel aos mandamentos é um sacrifício de salvação. Dar graças é uma oblação de flor de farinha e a esmola é um sacrifício de louvor. O que mais agrada ao Senhor é desviar-se do mal, afastar-se da injustiça é um sacrificio de expiação. Não te apresentes diante do Senhor de mãos vazias, todos estes sacrifícios se oferecem porque são mandados por Deus. A oferenda do justo enriquece o altar e o seu agradável perfume sobe à presença do Altíssimo. O sacrifício do justo é agradável ao Senhor e o seu memorial não será esquecido. Dá glória ao Senhor com generosidade e não sejas mesquinho nas primícias que ofereces. Em todas as tuas oferendas mostra um rosto alegre e consagra o dízimo de boa vontade. Dá ao Altíssimo conforme Ele te deu, com generosidade, segundo as tuas posses. Porque o Senhor sabe retribuir e te dará sete vezes mais. Não tentes suborná-l’O com presentes, porque não os aceitará. Nem confies num sacrifício injusto, porque o Senhor é juiz e não faz acepção de pessoas" (Sir 35, 1-15).
       Pedro começou a dizer a Jesus: «Vê como nós deixámos tudo para Te seguir». Jesus respondeu: «Em verdade vos digo: Todo aquele que tiver deixado casa, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos ou terras, por minha causa e por causa do Evangelho, receberá cem vezes mais, já neste mundo, em casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e terras, juntamente com perseguições, e, no mundo futuro, a vida eterna. Muitos dos primeiros serão os últimos e muitos dos últimos serão os primeiros» (Mc 10, 28-31).

      Os profetas, os sábios religiosos, os justos, tiveram, muitas vezes, de alertar para a purificação do culto e das devoções, para que estas levasse as pessoas a aproximar-se entre si e não fossem apenas ritos descontextualizados do dia a dia.
        Por um lado, o autor sagrada fala das oferendas e dos sacrifícios devidos a Deus. No entanto, que tais sacrifícios resultem da generosidade e da bondade de cada oferente. Por outro, o acento tónico recai sobre o cumprimento dos mandamentos. Dar graças vale mais que qualquer sacrifício...
       As práticas rituais são importantes, pois ligam-nos a uma comunidade e a uma história, mas o que conta (mais) é a adesão alegre ao Senhor, nosso Deus e a consequente prática do bem.
       No evangelho, as palavras de Jesus apontam para o mesmo. Os primeiros, no Seu ver e agir, são os que servem.

sábado, 25 de fevereiro de 2017

Domingo VIII do Tempo Comum - ano A - 26.02.2017

       1 – Um reino dividido não precisa de inimigos, destrói-se a si próprio. É uma imagem utilizada pelo próprio Jesus quando alguém sugere que Ele está possuído pelo demónio e que os milagres que realiza resultam desse poder demoníaco (cf. Mc 3, 22ss).
       Atravessamos ainda uma crise económico-financeira, sem fim à vista, pressupondo uma outra crise, de valores e de opções pela vida, pelas pessoas, pela dignidade humana. Como tem alertado o Papa Francisco, as pessoas, na sua fragilidade, tornam-se descartáveis a partir do momento em que nos colocam dificuldades, nos incomodam e "atrasam" a nossa vida, desde as crianças não nascidas até aos idosos esquecidos como capotes nos bengaleiros durante a primavera e verão; doentes e pessoas com deficiência passíveis de serem enquadrados em leis que "resolvam" o seu sofrimento (ou o nosso sofrimento e incómodo em vê-los sofrer!); com os refugiados e os medos ancestrais que tornem mais difícil a nossa vida e mais débil a nossa segurança, no meio do poderio económico e financeiro que estrangula pessoas, famílias e pequenas e médias empresas. Percentagens, lucros, precariedade no emprego e no trabalho, mão-de-obra barata ou escravizável, maior produtividade, olhando para números e abdicando das pessoas.
       O Bispo de Fátima, em reunião com os hoteleiros, na proximidade da Visita Apostólica do Papa Francisco a Fátima, por ocasião de Centenário das Aparições, pediu-lhes que fizessem de Fátima uma "casa de acolhimento, de ternura e de festa" e praticassem preços honestos, evitando inflações exageradas.
       O direito ao ganha-pão é louvável e o esforço para tal também. Os Santuários, festas e romarias, são propícios ao ajuntamento de grande número de pessoas, levando também à criação de serviços e ao desenvolvimento do comércio. O turismo religioso é defensável, promovendo uma cultura de tolerância, de direito à existência, mas também as tentações de aproveitamento desonesto. A vinda do Papa aumentará exponencialmente o número pessoas o que, só por si, gerará mais lucros para aqueles que ali ganham a vida sem necessidade de abusar das necessidades e/ou simplicidade das pessoas.
       2 – Contextualizamos o Evangelho com estas duas situações: a crise económico-financeira e a elevada inflação do comércio, da restauração e da hotelaria, em Fátima e nos arredores, por ocasião da Visita do Papa Francisco. Por aqui se vê que a invetiva de Jesus continua atual: ninguém pode servir a Deus e ao dinheiro, quando este não se obtém de forma justa, honesta, como fruto do trabalho, no respeito pela criação e pelas pessoas, para viver e valorizar tudo o que nos aproxima uns dos outros.
       Na Montanha soam claras a palavras de Jesus: «Ninguém pode servir a dois senhores, porque ou há de odiar um e amar o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro». Claro como a água. E continua Jesus: «Não vos preocupeis, quanto à vossa vida, com o que haveis de comer, nem, quanto ao vosso corpo, com o que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o alimento e o corpo mais do que o vestuário? Olhai para as aves do céu: não semeiam nem ceifam nem recolhem em celeiros; o vosso Pai celeste as sustenta. Não valeis vós muito mais do que elas?»
       Por momentos ficamos estupefactos! Como? Optamos pela ociosidade à espera que outros trabalhem para nós, à espera que a comida e o mais caiam do Céu? Deus vestir-nos-á? Alimentar-nos-á? Ou vamos andar todos nus como os homens das cavernas?
       Em nenhuma parte do Evangelho ouvimos Jesus a apelar à irresponsabilidade, à demissão, à ociosidade e à preguiça! Nem pouco mais ou menos. Entre outras expressões podemos ouvi-lo a dizer: dai-lhes vós de comer! Aquando das tentações, Jesus recusa-Se a transformar as pedras em pão, deixando claro que o pão é fruto do trabalho honesto e esforçado. Em todo o caso, o pão não é um fim em si mesmo! O dinheiro não é um fim em si mesmo! Os bens materiais não são um bem em si mesmo! O bem é a pessoa e todas as pessoas. O dinheiro, o trabalho, a riqueza, os bens materiais são um meio para que as pessoas vivam melhor, mais harmoniosamente, devem ser meios para aproximar, não para dividir. O que divide é diabólico. Muitas vezes o dinheiro, a riqueza, os bens materiais, as heranças, dividem, diabolizam as pessoas e as famílias, geram guerras e disputas, conflitos e retiram a saúde e o discernimento.
       No mundo em que vivemos e da forma como a sociedade está organizada precisamos de dinheiro, de bens materiais para vivermos com dignidade. O acesso à cultura e à educação, aos bens de consumo e à saúde, só são possíveis com dinheiro. É possível que algumas amizades também sejam influenciadas pelo estatuto socioeconómico. Mas o decisivo são as amizades puras, a saúde ou os cuidados e a atenção na doença, a família, a paz. O que nos torna humanos são os afetos, a ligação aos outros.
       O mais importante para Deus são as pessoas. E assim deve ser também para nós.

       3 – O dia-a-dia de um povo pobre, faminto, maltrapilho, com a dificuldade em sobreviver, tendo em conta a elevada carga de impostos, injustos, para o império, para as autoridades judaicas, para o Templo, para os cobradores de impostos, encontram nas palavras de Jesus não a desistência mas a confiança e o desafio àqueles que têm muito e sobretudo quando o muito que têm não resultou do esforço e do trabalho mas da opressão, da corrupção, do roubo.
       O Sermão da Montanha inicia com as Bem-aventuranças. Vejamos parte do comentário de São Tomás de Aquino: "Felizes (= Bem-aventurados) os que estão atentos às necessidades dos outros, porque serão mensageiros da alegria"; "Felizes os que sabem descansar e dormir sem procurar desculpas, porque chegarão a ser sábios". Estas duas bem-aventuranças de São Tomás remetem-nos para o proceder de Jesus e dos seus discípulos. Por um lado a partilha solidária. Somos responsáveis uns pelos outros. Os sofrimentos e carências dos outros dizem-nos diretamente respeito, pois em Cristo, são nossos irmãos. Por outro lado, o ser humano não é e não pode ser escravo do trabalho nem da riqueza. Há mais vida. Podemos matar-nos a trabalhar e perder a vida, esquecendo-nos daqueles que peregrinam connosco e que merecem o nosso olhar, a nossa atenção, o nosso tempo e a nossa ajuda, se for caso disso.
       «Quem de entre vós, por mais que se preocupe, pode acrescentar um só côvado à sua estatura? E porque vos inquietais com o vestuário?... Não vos inquieteis, dizendo: ‘Que havemos de comer? Que havemos de beber? Que havemos de vestir?’... Bem sabe o vosso Pai celeste que precisais de tudo isso. Procurai primeiro o reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais vos será dado por acréscimo».
       O Reino de Deus, e a sua justiça, implica cuidado por todos, opção preferencial pelos desvalidos, cura dos doentes, bênção para os prisioneiros do mal, pão e afeto para os famintos, água e vida para os sedentos. Com certeza que temos que nos preocupar em trabalhar, mas de tal forma que não hipotequemos a nossa vida ao futuro que só a Deus pertence. «Não vos inquieteis com o dia de amanhã, porque o dia de ama­nhã tratará das suas inquietações. A cada dia basta o seu cuidado». Vivamos hoje, com responsabilidade e consciência, certamente, mas gastando hoje a vida a favor dos outros, para que a vida nos seja favorável amanhã, para nós, diante do nosso próximo, na presença de Deus.
       4 – Na oração inicial da Missa pedimos ao Senhor, nosso Deus, "que os acontecimentos do mundo decorram para nós segundo os Seus desígnios de paz e a Igreja O possa servir na tranquilidade e na alegria". Daqui se infere o Evangelho, a Boa Nova que nos impele ao serviço, procurando traduzir para hoje a bênção, a paz e a alegria que nos vem de Deus.
       Na primeira leitura, o profeta faz eco dos vazios e das inquietações, em momentos de adversidade e chuva. O povo de Sião clama: «O Senhor abandonou-me, o Senhor esqueceu-Se de mim». A resposta de Deus é esclarecedora: «Poderá a mulher esquecer a criança que amamenta e não ter compaixão do filho das suas entranhas? Mas ainda que ela se esquecesse, Eu não te esquecerei». Em situações normais, uma Mãe liga-se eternamente ao filho, este é o amor maior que a liga ao mundo e à vida. Mas ainda que uma Mãe pudesse esquecer o fruto das suas entranhas, Deus não Se esquece de nenhum de nós.
       Nesta confiança, respondemos salmodicamente à Palavra de Deus: «Só em Deus descansa a minha alma, d’Ele me vem a salvação. Ele é meu refúgio e salvação, minha fortaleza: jamais serei abalado. Em Deus está a minha salvação e a minha glória, o meu abrigo, o meu refúgio está em Deus. Povo de Deus, em todo o tempo ponde n’Ele a vossa confiança, desafogai em sua presença os vossos corações».

       5 – Serviço, humildade e fidelidade ao Evangelho. São as notas que o Apóstolo Paulo tem vindo a sublinhar e que nos agrafam a Jesus e à Boa Nova da salvação.
       Paulo reafirma-se como discípulo missionário, servo de Cristo e administrador dos mistérios de Deus. «De nada me acusa a consciência, mas não é por isso que estou justificado: quem me julga é o Senhor. Portanto, não façais qualquer juízo antes do tempo, até que venha o Senhor, que há de iluminar o que está oculto nas trevas e manifestar os desígnios dos corações. E então cada um receberá da parte de Deus o louvor que merece».
       Paciência na espera, coragem da humildade, generosidade no tempo, para que Deus frutifique em nós e através de nós.

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (A): Is 49, 14-15; Sl 61 (62); 1 Cor 4, 1-5; Mt 6, 24-34.

Escola da Fé sobre São João de Brito - 24.02.2017

       Sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017, mais uma sessão da Escola da Fé, desta feita, dedicada a São João de Brito, o missionário nascido em Portugal, em Lisboa, e morto na Índia. Esta sessão foi orientada pelo Pe. Diamantino Alvaíde, Pároco de Moimenta da Beira e de Cabaços e Coordenador Pastoral do Arciprestado de Moimenta da Beira - Sernancelhe - Tabuaço.
       Alguns dados da vida de São João de Brito:
1647 – Nascimento em Lisboa (1 de Março).
1656 – Com 9 anos entra na Corte como pagem.
1662 – Entrada no Noviciado da Companhia de Jesus (17 de dezembro).
1664 – Faz os votos no fim do Noviciado (25 de dezembro).
1665 – Estudos na Universidade de Évora.
1666 – Começa os estudos no Colégio das Artes, em Coimbra.
1673 – Ordenação sacerdotal.
1673 – Partida para a Índia (15 de março). Chegada a Goa (14 de setembro).
1674 – Inicia a ação missionária na missão do Maduré.
1686 – Primeiro «martírio».
1687 – Regresso a Portugal. Chega a Lisboa a 8 de setembro.
1690 – Parte novamente para a Índia (8 de abril). Chegada a Goa (2 de novembro).
1693 – Prisão e tormento (8 de janeiro).
1693 – Martírio em Oriur (4 de fevereiro).
1852 – Beatificação pelo Papa Pio IX (8 de abril).
1947 – Canonização pelo Papa Pio XII (22 de junho)
       Depois de percorrer datas e momentos da vida e da missionação de São João de Brito, o missionário que procurou inculturar o cristianismo na Índia, sem impor, mas propondo, tempo para perguntas e para um interessante debate sobre o martírio e o amor a Deus e ao Evangelho, a ligação ao filme recente de Martin Scorsese, Silêncio, adaptação ao cinema do romance de Shusaku Endo, que fala dos missionários portugueses no Japão, onde o cristianismo chocou com a cultura nipónica.
       Os minutos finais foram aproveitados para uma breve apresentação da Caminhada diocesana para a Quaresma-Páscoa deste ano pastoral de 2016-2017.
       Como vem sendo habitual, o encontro encerrou com um momento de convívio, entre o chá e bolos e a conversa animada.
       Algumas fotos desta sessão:
Outras fotos disponíveis sobre as sessões da Escola da Fé 2016-2017

sábado, 18 de fevereiro de 2017

Domingo VII do Tempo Comum - ano A - 19.02.2017

       1 – «Sede santos, porque Eu, o Senhor, vosso Deus, sou santo». Deus manda Moisés convocar o povo para a santidade, não por capricho, mas para que viva e progrida como povo. A santidade é um compromisso de bondade e de serviço. "Não odiarás do íntimo do coração os teus irmãos, mas corrigirás o teu próximo, para não incorreres em falta por causa dele. Não te vingarás, nem guardarás rancor contra os filhos do teu povo. Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor".
       Só Deus é Deus e se o mandamento vem d'Ele então não há que temer pois não vem armadilhado, não tem letras pequeninas, nem condições escondidas ou disfarçadas. Deus não tem a pretensão de concorrer connosco ou de nos dominar ou de nos fazer escravos. Ele é o Senhor. Está acima e além de nós. Não nos faz sombra. Não tem a preocupação de nos mostrar que é melhor do que nós, como por vezes nos acontece, competimos tanto que nos esquecemos de viver, de nos apreciarmos mutuamente nos dons e nas qualidades e na entreajuda. "Onde Deus reina como Pai, os homens já não podem reinar uns sobre os outros" (J. Antonio Pagola). Ser santo, aperfeiçoar-se como pessoa, tornar-se melhor, é um desafio e um compromisso de cumprirmos com a nossa humanidade. Quanto mais aprendermos, quando mais nos aproximarmos uns dos outros, quanto mais desenvolvermos as nossas capacidades para deixar marcas positivas no mundo, tanto mais seremos humanos, criados à imagem e semelhança de Deus.
       A Lei dada por Deus ao povo através de Moisés prepara-nos para a grandeza! Atenção, não nos prepara para a sobranceria, para a arrogância, para prepotência! Mas para a grandeza que nos embeleza e nos humaniza, que nos aproxima uns dos outros e nos irmana, levando-nos a gastar-nos pelos outros, a persistir nas dificuldades, a solidarizar-nos nas aflições e a caminhar juntos!
       2 – Jesus faz-nos passar dos mínimos garantidos para o máximo. Não contra os outros ou apesar deles. Mas em relação a nós próprios. O caminho é superar-nos constantemente. Não desistir. Insistir. Dando o melhor. No Sermão da Montanha Jesus exige de nós. Não exige pouco ou muito. Exige tudo. E a acrescentar a isto, a superação visa sintonizar-nos com o sofrimento dos outros, com o seu peregrinar, com as suas lutas. Melhorar a minha performance para ser mais prestável aos outros. Sou abençoado na medida em que me torno bênção para os outros.
       Hoje pudemos escutar novamente a contraposição de Jesus, pela positiva. «Ouvistes que foi dito aos antigos: ‘Olho por olho e dente por dente’. Eu, porém, digo-vos: Não resistais ao homem mau. Mas se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a esquerda». De enxurrada, intenso e imenso. Jesus já tinha surpreendido com as Bem-aventuranças, invertendo a lógica do poder e da felicidade. Agora, à lei de talião, apõe a não-violência e o perdão. Diga-se que a lei de talião já era preventiva, olho por olho e dente por dente promovia uma justiça (popular) equitativa. Se me partem um dente, eu não tenho o direito a partir dois!
       Mas Jesus vai mais longe. «Se alguém quiser levar-te ao tribunal, para ficar com a tua túnica, deixa-lhe também o manto. Se alguém te obrigar a acompanhá-lo durante uma milha, acompanha-o durante duas. Dá a quem te pedir e não voltes as costas a quem te pede emprestado. Ouvistes que foi dito: ‘Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo’. Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai por aqueles que vos perseguem, para serdes filhos do vosso Pai que está nos Céus».
       3 – O caminho da santidade, do aperfeiçoamento funda-se e fundamenta-se em Deus. Relembrando sempre as palavras sábias do então Cardeal Joseph Ratzinger (Bento XVI): para o Reino de Deus há tantos caminhos como as pessoas. Porém, Jesus é o Caminho, a Verdade e a Vida. O meu caminho, o teu caminho, há de levar-nos a Jesus, há de levar-nos ao Pai. Sendo assim, quanto mais perto eu estiver de Jesus e quanto mais perto tu estiveres de Jesus, mais perto vamos estar um do outro. E se estamos próximos poderemos apoiar-nos mutuamente, ajudar-nos, incentivar-nos quando um de nós estiver a fraquejar.
       No Reino de Deus não há excluídos, pois os nossos caminhos hão de desembocar em Jesus. Por conseguinte, estamos "condenados" a aproximar-nos uns dos outros. Na verdade, diz-nos Jesus, Deus é Pai de todos e «faz nascer o sol sobre bons e maus e chover sobre justos e injustos». A bênção recai sobre todos. Temos afinidades. Por certo. Mas nem por isso estamos dispensados de amarmos até os nossos inimigos, os que nos são indiferentes, os que desprezamos. Aliás, questiona Jesus, que vantagem haveria em amar aqueles que nos amam? Isso todos podem fazer. Os discípulos de Jesus são desafiados ao máximo. E o máximo é Deus. «Portanto, sede perfeitos, como o vosso Pai celeste é perfeito».
       A vinda de Jesus ao mundo, Deus que Se faz Homem, tem como missão reconciliar-nos a todos com Deus. Pelo mistério da Sua morte e da Sua ressurreição, Jesus resgata-nos das trevas, do pecado e da morte, para nos reconduzir ao Coração do Pai. "Ele perdoa todos os teus pecados e cura as tuas enfermidades; salva da morte a tua vida e coroa-te de graça e misericórdia. / O Senhor é clemente e compassivo, paciente e cheio de bondade; não nos tratou segundo os nossos pecados, nem nos castigou segundo as nossas culpas. / Como o Oriente dista do Ocidente, assim Ele afasta de nós os nossos pecados; como um pai se compadece dos seus filhos, assim o Senhor Se compadece dos que O temem" (Salmo).
       4 – Também em São Paulo descortinamos esta corresponsabilidade pela salvação, que nos é dada por Jesus Cristo, mas que nos impele a sermos instrumentos redentores uns para os outros. O outro é Presença de Deus, é Rosto que nos desafia e interpela, na sensibilidade de Emmanuel Levinas, é Rosto que irrompe e me chama, é um apelo da eternidade, do Infinito, que não é redutível a mim, mas me provoca, me interpela, pois no face a face encontro-me com o divino e então é mais forte o mandamento "não matarás". Se nos recordarmos do crime de Caim contra o seu irmão Abel, a sentença de Deus questiona-nos e responsabiliza-nos pelo sangue dos nossos irmãos, pelas suas vidas. Somos guardas dos nossos irmãos ou seremos Caim uns para os outros!
       O Apóstolo interroga-nos: «Não sabeis que sois templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós? Se alguém destrói o templo de Deus, Deus o destruirá. Porque o templo de Deus é santo, e vós sois esse templo. Ninguém tenha ilusões. Se alguém entre vós se julga sábio aos olhos do mundo, faça-se louco, para se tornar sábio. Porque a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus». É a nossa grandeza: na nossa pobreza e humildade, deixarmo-nos guiar pela sabedoria de Deus, mesmo que pareçamos loucos. O decisivo é que Cristo reine em nós. “Onde o reinado de Deus vai abrindo caminho, vai-se construindo comunicação, solidariedade, comunhão e fraternidade” (Pagola).
       Em Maria encontramos uma modelo de humildade ao ponto de n’Ela se gerar o próprio Deus. Como Ela, também nós possamos dizer: a minha alma engrandece o Senhor. Traduzindo: que em nós se manifeste a grandeza de Deus. Para isso precisamos de ser templo e transparência e respiração de Deus.
       Na Carta aos Coríntios, que temos vindo a escutar, São Paulo insiste na necessidade de viver Jesus, transparecer Jesus, testemunhar Jesus. Em tudo. Em toda a parte. Com todos. Para louvor e glória de Deus Pai. «Tudo é vosso: Paulo, Apolo e Pedro, o mundo, a vida e a morte, as coisas presentes e as futuras. Tudo é vosso; mas vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus». O apóstolo alerta-nos para não confundirmos o mensageiro (eu, tum, cada um de nós) com a Mensagem (Jesus e o Seu Evangelho de Amor). Não nos anunciamos. Anunciamos Jesus Cristo, morto e ressuscitado!

Pe. Manuel Gonçalves

Textos para a Eucaristia (A): Lev 19, 1-2. 17-18; Sl 102 (103); 1 Cor 3, 16-23; Mt 5, 38-48.

São Teotónio, Presbítero

Nota biográfica:
       Nasceu em Ganfei (Valença do Minho) aproximadamente no ano 1082 e foi educado piedosamente desde a infância. Quando D. Crescónio, seu tio, foi nomeado bispo de Coimbra, levou-o consigo para esta cidade e confiou ao arcediago D. Telo a sua formação nas disciplinas eclesiásticas. Depois de ordenado sacerdote, foi nomeado prior da Igreja da Sé de Viseu. Fez duas peregrinações à Terra Santa. No regresso da segunda peregrinação, insistentemente convidado por D. Telo e outros dez homens de grande virtude, fundou com eles o mosteiro da Santa Cruz em Coimbra, de que foi membro eminente e muito admirado, nomeadamente por S. Bernardo de Claraval. Teve também papel importante em algumas conjunturas da pátria. Morreu em 1162.
Oração:
       Senhor nosso Deus, que pela palavra e pelo exemplo de São Teotónio reformastes a disciplina religiosa, concedei-nos, por sua intercessão, que, escolhendo o caminho estreito da perfeição cristã, mais facilmente alcancemos a vida eterna. Por Nosso Senhor Jesus Cristo... 

Da Vida de São Teotónio, escrita por um autor contemporâneo, seu discípulo

Bom mediador entre Deus e os homens

Desde que foi ordenado sacerdote, Teotónio deu mostras evidentes de grande progresso no caminho da perfeição e santidade. A sua vida era para todo o povo de Deus um admirável exemplo de virtude.
Desempenhava com exímia perfeição as obrigações da sua ordem [sacerdotal]: instruía na fé as gentes rudes e incorporava-as na Igreja pelo baptismo; chamava os pecadores à penitência e, curando-os com a medicina das suas orações e palavras de encorajamento, absolvia-os e reconciliava-os com a Igreja; como bom mediador entre Deus e os homens, a todos ensinava os preceitos divinos e pregava a verdade, apresentava ao Senhor as preces dos fiéis e intercedia diante de Deus pelos pecados do povo, oferecia no altar o sacrifício de expiação, recitava as orações e abençoava os dons de Deus.
Na igreja comportava-se sempre com santa reverência e temor de Deus, e cumpria as funções sagradas com toda a perfeição.
Desprezava a sumptuosidade e as enganadoras seduções do mundo; não se envaidecia com os louvores, nem se exaltava com a riqueza, nem se amargurava com a pobreza.
Há quem o louve pela sua renúncia total às curiosidades, divertimentos, ostentações e coisas semelhantes; eu, porém, considero não menos digna de louvor a sua perfeição na virtude da castidade, comprovada pela circunspecção e prudência em todas as suas acções.
Com a ajuda do Senhor, passarei agora a contar como Teotónio veio a tomar o hábito de Cristo e como viveu na Religião sob a regra de Santo Agostinho. Desde a sua entrada na Religião, ele sobressaía notavelmente entre os demais pela santidade de costumes, extraordinária abstinência e assídua oração. Continuamente dirigia a Deus as suas preces; e, quando deixava de rezar, lançava mão da leitura sagrada, aplicando-se principalmente à Salmodia. Com efeito, além das Horas Canónicas e todo o Ofício Divino, em que se empenhava fielmente com santa reverência e temor de Deus, rezava cada dia todo o Saltério.
O tempo que lhe restava era para se ocupar em exercícios de boas obras ou em diversos serviços do mosteiro.
Longe de transigir com qualquer atractivo de vícios ou vaidades mundanas, era sua constante predilecção o recolhimento, a mansidão, o silêncio e a paz. Finalmente – coisa rara no nosso tempo – foi tão profunda a sua humildade, que parecia querer passar pelo mais esquecido de todos e o último dos servos de Deus.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

VL – A autoridade Jesus e dos seus discípulos: o serviço

       A liturgia dos últimos e dos próximos domingos serve-nos o Sermão da Montanha (Mt 5,1-7,29), que começa com as Bem-aventuranças e termina desta forma: “Quando Jesus acabou de falar, a multidão ficou vivamente impressionada com os seus ensinamentos, porque Ele ensinava-os como quem possui autoridade e não como os doutores da Lei”.
       Quando ouvimos falar em autoridade quase sempre nos lembramos de poder, de arrogância, de sobranceria. Jesus, desde o início, faz saber aos seus discípulos, daquele e de todos os tempos, que a Sua lógica é diferente, o Seu poder está no amor, no serviço, no gastar a vida não por quem merece mas por todos e especialmente pelos excluídos, os pecadores, os pobres, os doentes.
       Um dia destes, um agente da GNR mandou-me encostar. Como em todas as profissões e/ou vocações há gente boa e gente maldisposta. Seja onde for tenho consciência que cumprem a sua missão. E assim foi. Documentos pessoais e da viatura. Colete. Triângulo. Deu a volta ao carro. Sempre com um ar descontraído, humano. E no final: tenha um bom domingo. Pode arrancar quando puder. Tudo de bom. Cumpriu com zelo, mas também com simpatia o seu dever. E com um gracejo final. Simples. É possível ser sério sem ser carrancudo, arrogante ou implicante. (Em nenhum momento revelei a minha identidade sacerdotal).
       Na linguagem como na vida, Jesus apresenta-Se dócil, próximo, a favor dos mais desfavorecidos e da integração de todos no Reino de Deus, repudiando as injustiças, as invejas e os ódios, promovendo o serviço, o amor e o perdão, contando connosco, comigo e contigo. Cada pessoa conta. Cada um de nós é assumido como irmão, filho bem-amado do Pai. Jesus vem desfazer os muros da incompreensão, do egoísmo, da intolerância, da violência e construir pontes e laços de entreajuda, de comunhão e de fraternidade.
       No Sermão da Montanha Jesus acentua a humildade, o despojamento, a pobreza, mas nunca a desistência ou o conformismo. São felizes os que lutam pela justiça e promovem a paz, os que usam de misericórdia e cuja compaixão constrói humanidade. Jesus não desiste. Vai até ao fim. Por amor. A Sua autoridade caracteriza-se pela bondade, por atrair os que foram colocados de parte pela política, pela sociedade e pela religião. Para Ele não há pessoas perdidas, todos podem recomeçar e ser parte importante no Seu reino de amor. Como nos lembrou há pouco o Papa Francisco, “não há santos sem história, nem pecadores sem futuro”.

Publicado na Voz de Lamego, n.º 4398, de 14 de fevereiro de 2017

Tabuaço: Grupo de Jovens foi ao cinema ver o Silêncio

       Nestes últimos tempos temos ouvido falar sobre o filme o “SILÊNCIO”
       Trata-se de um filme, baseado no romance de Shusaku Endo, católico japonês, que narra a história de dois padres jesuítas portugueses, Sebastião Rodrigues e Francisco Garpe, que como missionários vão para o Japão. Têm como missão descobrir o paradeiro de um outro padre, Cristóvão Ferreira, que depois de torturado, terá renegado a sua fé.
       Por tudo o que nos vinha chegando, parecia ser um filme que nos colocava várias questões, relativamente às dúvidas de fé, às de fidelidade, ao silêncio de Deus…
       Sentindo o desafio de nos questionarmos, o Grupo de Jovens da nossa paróquia foi, no passado sábado, 11 de fevereiro, ver o filme. Depois de nos acomodarmos confortavelmente nas cadeiras da sala, não esquecendo as pipocas, lá começamos a vê-lo.
       Com o decorrer do filme vai-se instalando o suspense entre todos. Algumas das cenas vividas despertam-nos para realidades muito presentes, como a perseguição aos cristãos!
       No final ficamos todos um pouco baralhados. A necessidade de refletirmos sobre o que vimos era evidente. Esse era o objetivo! Interpelarmo-nos sobre o que sentimos e, de certa forma, identificar, nas nossas vidas, situações semelhantes, de dúvida, hesitação, interrogação do silêncio de Deus.
       Brevemente, numa próxima reunião do grupo, teremos um tempo de reflexão sobre o que vimos e sentimos. Acredito que todos sairemos mais fortalecidos na fé e no amor a Deus!

Graça Ferraz, Grupo de Jovens de Tabuaço
in Voz de Lamego, ano 87/14, n.º 4399, 14 de fevereiro de 2017

Se alguém quiser seguir-Me, renuncie a si mesmo

       Jesus chamou a multidão com os seus discípulos e disse-lhes: «Se alguém quiser seguir-Me, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-Me. Pois quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á; mas quem perder a vida, por causa de Mim e do Evangelho, salvá-la-á. Na verdade, que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua vida? Que daria o homem em troca da sua vida? Portanto, se alguém se envergonhar de Mim e das minhas palavras no meio desta geração infiel e pecadora, também o Filho do homem Se envergonhará dele, quando vier na glória de seu Pai, com os santos Anjos». Jesus declarou-lhes ainda: «Em verdade vos digo: Alguns dos que estão aqui presentes não morrerão, sem terem visto chegar o reino de Deus com o seu poder» (Mc 8, 34 – 9, 1).
       No Evangelho proposto para a hoje, Jesus clarifica as condições do seguimento, para os discípulos e para a multidão. Não se trata de exigências distintas, mas da mesma urgência. Para O seguimos é necessário que não nos centremos em nós, no nosso umbigo, mas nos centremos em Deus e nos outros. Na volta, se todos seguirmos na procura da mesma perspetiva, seremos compensados, na partilha solidária, na comunhão, na vivência da mesma fé. O mal da sociedade, ou a origem de todos os males é precisamente o egoísmo, cada um pensar apenas em si mesmo, ou cada empresa pensar apenas no lucros dos gerentes e/ou proprietários, ou o partido só defender e promover os seus à custa da maioria dos cidadãos... e depois vêm as crises!

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

VL – Deus não mora à superfície…

       O Profeta de Elias, depois de matar os profetas idólatras, é avisado pelo Rei Acaz que o mesmo lhe sucederá. Elias sai da cidade e caminha pelo deserto. Já esgotado, pede ao Senhor que lhe tire a vida. O anjo do Senhor aparece-lhe por duas vezes e ordena-lhe: «Levanta-te e come, pois tens ainda um longo ca­mi­nho a per­correr». Elias faz como o Senhor lhe ordena e dirige-se para o monte Horeb. Aí passa a noite. O Senhor faz saber a Elias que vai passar… «Passou um vento impetuoso e violento, que fendia as montanhas e quebrava os rochedos diante do Senhor; mas o Senhor não se encontrava no vento. Depois do vento, tremeu a terra. Passou o tremor de terra e ateou-se um fogo; mas nem no fogo se encontrava o Senhor. Depois do fogo, ouviu-se o murmúrio de uma brisa suave. Ao ouvi-lo, Elias cobriu o rosto com um manto, saiu e pôs-se à entrada da caverna» (1 Reis 19, 1- 14).
       Deus nem sempre é evidente. Em questões de fé nem tudo é branco e preto. Um crente passa por momentos de treva, de dúvida e hesitação. Um “ateu” pode estar perto de Deus, em busca, a percorrer um caminho de aproximação.
       É, em meu entender, uma das linhas condutoras do texto de Tomáš Halík, Paciência com Deus, procurando fazer pontes, prevenir juízos precipitados, para não encerrar o próprio Deus em ideias preconcebidas e limitando a Sua ação.
       Deus poderá não ser tão evidente como por vezes se faz crer. Por um lado, em Jesus Cristo, Deus manifesta-Se em plenitude, revela o Seu rosto. Mas não Se deixa aprisionar por uma pessoa ou por uma instituição ou por uma religião. Quem se convence que possui Deus está perto de blasfemar, pois Deus é e continuará a ser Mistério.
       Por outro lado, segundo o teólogo checo, o caminho da fé não é linear. A busca honesta e decidida tem avanços e recuos. Deus nem sempre está onde O queremos, pode estar onde não pensamos. Elias é surpreendido. Deus não está na tempestade mas na brisa suave, onde quase não Se percebe.
       Santa Teresinha, no momento de especial sofrimento vive a “noite da fé”, contudo, não diminui o amor que permanece até à eternidade. Em Nietzsche, na proclamação da morte de Deus, segundo o autor, também se intui o silêncio dos crentes que deixaram que Deus fosse morto sem protestarem, sem reivindicarem a Sua vida e a Sua presença… Mais perigoso que um ateu convicto é um crente apático!

publicado na Voz de Lamego, n.º 4398, de 7 de fevereiro de 2017

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

ELMAR SALMANN - A VITALIDADE DA BÊNÇÃO

ELMAR SALMANN (2017). A Vitalidade da Bênção. Braga: Editorial A.O. 176 páginas.
       Na Assembleia do Clero de Lamego, em 14 de novembro de 2015, o Provincial da Companhia de Jesus em Portugal, Pe. José Frazão Correia, comentou e sugeriu a leitura deste livrinho, de Elmar Salmann, seu mestre. A Editorial do Apostolado de Oração, integrada na Companhia de Jesus, dá à estampa para Portugal, publicado em Itália em 2010, no âmbito do Ano Sacerdotal. Mas como se costuma dizer mais vale tarde que nunca.
       O ministério da bênção há de caracterizar a vida do sacerdote e da Igreja. O cristianismo, em muitas situações, já não está em maioria e, por vezes, cultural e socialmente já não tem a relevância do passado. Por outro lado, existem situações novas, na vivência dos sacramentos, no compromisso com a comunidade, nos casais, na coexistência de várias confissões religiosas. Poderá ser necessário criar centros sociológico-religiosos, para lá das paróquias, envolvendo e comprometendo os leigos, surgindo o sacerdote numa dinâmica de abençoar...
       Deus não se vende no supermercado ou à medida de cada um. Em todo o caso, já passamos de um Deus distante e juiz, para um Deus próximo, que abençoa e nos renova, nos desafia a não desistir. O Deus cristão é o mais difícil. No Islamismo não há praticamente dogmas. É um Deus soberano, transcendente. No Judaísmo, Deus é transcendente, embora intervenha na História. Há, com efeito, uma interdependência entre Deus e o povo. Deus alimenta o povo e o povo mantém-se obediente às Suas leis. Quando há fome, violência, dispersão, é porque Deus está de costas voltadas para o povo, em consequência do seu pecado. No Cristianismo, Deus encarna, assume a nossa natureza humana. Um Pai, que sendo Amor, Se dá inteiramente. Cristo, Filho de Deus, tudo recebe do Pai e tudo acolhe para partilhar, no Espírito Santo. Há circularidade do amor que deve ser paradigma para que assim nos comprometamos. É um Deus mais difícil de conjugar. Em Jesus, Deus e o Homem...

Alguns recortes:
"De Igreja masculina, hierárquica, sacral, maioritária, representante do sagrado e da administração da graça, tornamo-nos uma Igreja comunitária (...), mais exposta, fraterna; de uma Igreja da verdade e da santidade, chegamos a uma Igreja em busca de sentido, da abertura, da solidariedade; do primado de Deus e de Cristo Nosso Senhor passamos a Cristo nosso irmão, que Se torna companheiro da jornada".
"A Ressurreição é a confirmação, por assim dizer, do ato criador, daquela alegria primordial e elementar, sob as condições de uma história distorcida e sobrecarregada... Na ressurreição, explode o mundo, abre-se como o rasgar de um véu. O riso pascal corresponde a este evento libertador; corresponde a este evento que explode e rasga paisagens de vida".
"O juízo derradeiro de Deus não se destina a uma condenação. Não se trata de um recontro com um observador, não é um relatório nem muito menos um prestar contas! mas, sob o olhar límpido e, talvez também, sorridente de Deus, seremos capazes de rever e avaliar as reais proporções da nossa existência... talz no juízo final possamos pela primeira vez rir de nós, com verdade, sem azedume nem amargura, com um riso capaz de desembaraçar os nós da nossa emaranhada existência".
"O domingo nasce precisamente do olhar positivo e comprazido de Deus que «viu que tudo era bom» (Gn 1, 3.10.12.18.21.31). Deus tem os olhos contemplativos capazes de realçar em tudo a sua vertente positiva. Deus é capaz de consentir, sorrindo, àquilo que simplesmente, é. Fala bem daquilo que vem à existência e daí a capacidade de «bem-dizer»/«abençoar». O domingo... irrompe os mecanismos chantagistas e esmagadores da nossa autoconfirmação e da nossa necessidade de conflitualidade, de nos compararmos, de nos perdermos em mil azáfamas... Faz-nos descobri a melodia de fundo que dá estabilidade à nossa vida e nos convida a afinar por ela. Faz-nos «falar bem» de nós mesmos, do outro e da nossa vida e deixa-nos entrever-nos a nós mesmos, num suave vislumbre, como uma bênção. Todos os sentidos, a vista, a voz, o ouvido, o tato, o gosto, confluem no domingo para criar este tipo de sensibilidade positiva, para o ciclo virtuoso que dinamiza a nossa existência".
"Ser padre significa a aventura desta incarnação do Céu nas cabanas dos homens".
"Em tudo isto, a vida e a pregação de um sacerdote que saiba abençoar refletirá a riqueza da tradição, a vastidão dos estilos de vida cristã no mundo global, as muitas vozes da comunidade, e tornar-se-á advogado dos ausentes, dos pobres, dos excluídos (cada um segundo a sua sensibilidade) - e um pobre representante e advogado da voz e da presença do estilo de Jesus, do seu dar-Se, dizer-Se e mostrar-Se no meio de nós e diante do Pai".

VL – Silêncio: Deus não mora à superfície

       Esta semana partimos de dois livros, que podem ser sugestões de leitura: Silêncio, de Shusaku Endo, e Paciência com Deus, de Tomáš Halík.
       “Silêncio”, romance adaptado por Martin Scorsese a filme, e daí também a grande divulgação momentânea, retrata a vida de um missionário jesuíta, português, que teve um papel muito importante na evangelização em terras do Japão. E, perante as muitas dificuldades que encontrou, terá renunciado à fé católica.
       O provincial dos jesuítas em Portugal, em entrevista à Agência Ecclesia, sublinha a grande oportunidade para confrontar as várias dimensões da fé. A obra recorda uma página histórica do encontro difícil entre o cristianismo (e o Ocidente) e as tradições japoneses que inicialmente acolheram com benevolência o cristianismo e depois moveram-lhe uma grande perseguição. Para o Padre José Frazão Correia é uma grande oportunidade para revisitar a questão dramática da fé. A dificuldade em permanecer firme num ambiente de extrema perseguição. Revisitar a experiência da fé a partir da sua dimensão dramática e equívoca, várias perspetivas possíveis para enquadrar a questão da adesão a Jesus e da sua visibilidade pública.
       O filme/romance não nos permite fazer uma leitura a branco e preto, bem e mal, afirmação da fé pelo martírio ou negação da fé pela apostasia. Aqui percebemos que a aproximação à fé, a afirmação de fé em contextos de grande perseguição, de um grande sofrimento, põe em reserva um juízo demasiado fácil… Publicamente o personagem principal, o padre Sebastião Rodrigues, renuncia à fé, mas o realizador, tal como o autor, faz-nos perceber que no íntimo do padre jesuíta há um percurso de fé e estamos longe de concluir que a sua apostasia pública seja uma renúncia à fé no mais íntimo do seu coração.
       Tomáš Halík, neste título, Paciência com Deus, e que tem como subtítulo “Oportunidade para um encontro”, procura perceber o Zaqueu que se esconde no sicómoro (figueira…), mas que Deus descobre por entre a folhagem. Vivemos num tempo em que podemos, com alguma facilidade, catalogar os que têm fé e os que não têm, os crentes e os ateus. O autor recusa uma leitura apressada, fácil, em que se crie uma divisória nítida. Há muitos Zaqueus para os quais temos que olhar com carinho, com atenção. Deus escapa-nos, não se enforma nas nossas conceções racionais. É mistério que, no entanto, está presente em cada um de nós, pois todos fomos/somos criados à Sua imagem e semelhança. Não nos podemos apossar d’Ele, pois também se encontra nos outros…

publicado na Voz de Lamego, n.º 4397, de 31 de janeiro de 2017

Vejos as pessoas, que parecem árvores...

       Jesus e os seus discípulos chegaram a Betsaida. Trouxeram-Lhe então um cego, suplicando-Lhe que o tocasse. Jesus tomou o cego pela mão e levou-o para fora da localidade. Depois deitou-lhe saliva nos olhos, impôs-lhe as mãos e perguntou-lhe: «Vês alguma coisa?». Ele abriu os olhos e disse: «Vejo as pessoas, que parecem árvores a andar». Em seguida, Jesus impôs-lhe novamente as mãos sobre os olhos e ele começou a ver bem: ficou restabelecido e via tudo claramente. Então Jesus mandou-o para casa e disse-lhe: «Não entres sequer na povoação» (Mc 8, 22-26).
       Os gestos de Jesus são consequência natural e consequente das Suas palavras. O anúncio do Evangelho não dispensa a atenção a pessoas concretas, de carne e osso.
       Por outro lado, e como em outras situações, a cura física deste cego de nascença é real mas também símbolo da cura que encontramos em Jesus Cristo. Ele cura-nos de toda a cegueira espiritual, de tudo o que tolda o nosso olhar, que nos faz desviar do nosso semelhante.
       Este encontro sugere-me uma pequena estória. Certo ocasião, quando alvorecia, o Mestre perguntou aos seus discípulos como é que se sabe o momento em que já é dia e não noite. Um discípulo respondeu: quando surge no horizonte a primeira claridade e podemos apagar as lanternas porque já vemos o caminho à nossa frente. Outro discípulo respondeu que sabia que era dia logo que conseguissem distinguir o que era pessoas e o que eram árvores. A resposta do sábio: é dia quando no outro conseguires ver um irmão.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Timothy Radcliffe - NA MARGEM DO MISTÉRIO

TIMOTHY RADCLIFFE (2017). Na margem do mistério. Ter fé em tempos de incerteza. Prior Velho: Paulinas Editora. 144 páginas.
       Mais uma belíssima leitura que ora recomendamos. Claro, se fazemos uma sugestão é precisamente por pensarmos que é pertinente para nós e também o será para os outros. O autor, Timothy Radcliffe, é inglês, sacerdote dominicano, formado em Oxford e em Paris, é autor de várias obras de espiritualidade, já foi Mestre-geral da Ordem dos Pregadores (dominicanos), e como sacerdote dominicano já percorreu diversas partes do mundo.
       Já aqui o sugerimos: TIMOTHY RADCLIFFE - IMERSOS EM DEUS.
       Por estes dias lemos e sugerimos três títulos: SILÊNCIO, de Shusaku Endo, PACIÊNCIA COM DEUS, de Tomáš Halík, e A ESTRADA, de Cormac McCarthy e cada um à sua maneira falava das questões que nos coloca a fé em tempos de crise, de adversidade, de confusão e relativismo.
       Coincidentes no tempo de leitura, também este título nos fala das dificuldades da leitura da fé, do cristianismo e da Igreja nos tempos atuais, convocando a encontrar novas respostas ou pelo menos a formular novas perguntas, deixando-se surpreender pela graça de Deus e pelos sinais que estão presentes nas novas situações, com coragem e persistência, com disponibilidade para escutar, para abraçar, para acolher, com firmeza e docilidade, com verdade e coragem. Sem renunciar à sua fé, pelo contrário, só uma fé esclarecida, feita de convicções e de alegria, pode dialogar com outras opções de vida e com outras religiões.
       Viver e partilhar a esperança. Anunciar o Evangelho da Alegria. A alegria que vem da fé não é cutânea, é baseada em Jesus Cristo, está para lá do sofrimento. Com efeito, a alegria só é consistente tendo experimentado a dor e o sofrimento e a própria morte, não se encerrando aí, mas procurando dar sentido à vida. O Papa Francisco diz-nos que "a fé não deve ser confundida com estar bem ou sentir-se bem, com sentir-se consolado no íntimo, porque temos um pouco de paz no coração. A fé é o fio de ouro que nos liga ao Senhor, a pura alegria de estar com Ele, de estar unido a Ele; é o dom que vale e avida inteira, mas que só dá fruto, se fizermos a nossa parte".
       As normas, nesta época, continuam a ser válidas, mas mais o calor humano, a proximidade, a entreajuda, o compromisso com o que nos une, a abertura aos outros, a promoção das diferenças que podem enriquecer-nos e ajudar-nos a crescer. A abertura e a tolerância não é o mesmo que desistência, do que cedência pura e simples aos valores e às convicções dos demais, pelo contrário, a certeza da própria identidade ajuda a dialogar, a fazer pontes, a reconhecer o outro e a olhá-lo olhos nos olhos, sem medo, sem medo de ser provocado, sem medo das perguntas e dos questionamentos. Apostar na misericórdia não é negar o pecado ou as imperfeições. Significa isso sim, que os defeitos, os erros, o pecado, não nos impedem de ser irmãos. O caminho de Jesus é o do perdão e da misericórdia. É um caminho exigente. É levar a sério o outro e a sua liberdade. Se eu desculpo sem mais... isso seria contraproducente. Alguém mata uma pessoa. Deus não lhe vai dizer que não interesse, que passe à frente... Não. Isso não seria misericórdia! A misericórdia reabilita, leva a sério a pessoa, envolve-a para corrigir o caminho e enveredar por um caminho alternativo de bem e de proximidade.
       Do mesmo jeito o perdão. Perdoar sempre. Mas nem sempre é possível perdoar. Na cruz, Jesus não diz: eu perdoo-vos, mas sim "Pai perdoa-lhes...". Por vezes é necessário dar tempo. Rezar. Pedir a Deus pelos que nos fizeram mal, nos traíram. Há de chegar um dia que já não quero mal à pessoa, porquanto rezo por ela. Há de chegar a altura que estou pronto para aceitar o outro, apesar do que me fez.
       Alegria e música para enfrentar a dor... e a morte... quando não há palavras...
       Uma palavra de agradecimento e de estima ao colega e amigo sacerdote que me ofereceu este belíssimo livro.

VL – O perigo de endeusar políticos como salvadores

       Por estes dias assistimos à tomada de posse de um novo presidente dos EUA. Em linha do que tem sucedido em alguns países europeus e/ou ocidentalizados, tende-se a enveredar por extremismos que excluem quem se assumem diferentes e, para quem se senta no poder, inimigos. Os extremos tocam-se. Expressão popular, que mostram que as extremidades se tocam, pois a perspetiva é excluir, afastar, criar ruturas, oposição entre bons, os que são da minha fação, e maus, os que pensam e vivem de maneira diferente.
       De 18 a 25 de janeiro, de cada ano, a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, respondendo à oração e à missão de Jesus Cristo: que todos sejamos um, como Ele e o Pai são Um. Para haver conflito basta haver duas pessoas, uma vez que por mais parecidas que sejam e mais sintonizadas que estejam há de haver algum momento em que uma palavra ou um gesto possam provocar um esfriamento ou afastamento. É importante lidar com as diferenças e com os conflitos. A discussão gera luz, clareando as convicções de cada um, fortalecendo os motivos que nos levam a ter consideração pelos outros e pelos dons que cada um pode colocar ao serviço da sociedade. Estamos onde estamos, para o bem e para o mal, à custa de muitas pessoas, muitas ideias, descobertas, invenções, criatividade, reflexão. Procurar a unidade não é, de todo, diminuir, descredibilizar ou submeter os que pensam de outra maneira, é caminhar em conjunto, trabalhando pela justiça e pela paz, procurando estabelecer pontes de diálogo, de convivência saudável, para uma sociedade mais justa. É o caminho da fraternidade proposto e iniciado por Jesus.
       O Papa Francisco, numa entrevista concedida ao “El País”, na passada sexta-feira, alertava para o perigo de idolatrar alguns líderes, achando que são salvadores, com os próprios a apresentarem-se como tal. "O caso da Alemanha, em 1933, é típico. Havia um povo que estava em crise, em busca da sua identidade e apareceu este líder carismático [Adolf Hitler] que prometeu dar-lhes uma. Deu-lhes uma identidade distorcida e depois já sabemos o que aconteceu”. E o Papa continua: “Procuramos um salvador que nos devolva a identidade e defendemo-nos com muros, com arames farpados, com o que for, dos outros povos que nos podem roubar a identidade e isso é muito grave. Por isso, procuro sempre dizer: dialogai entre vós, dialogai entre vós”. Em relação ao presidente norte-americano, Donald Trump, o Papa pede-lhe que esteja atento aos mais frágeis e, embora com alguns sinais menos positivos, há que lhe dar tempo.

publicado na Voz de Lamego, n.º 4396, de 24 de janeiro de 2017

BENTO XVI - Santos Cirilo e Metódio

Queridos irmãos e irmãs!
        Gostaria hoje de falar dos Santos Cirilo e Metódio, irmãos no sangue e na fé, chamados apóstolos dos eslavos. Cirilo nasceu em Tessalonica em 826/827, filho do magistrado imperial Leão: era o mais jovem de sete filhos. Desde criança aprendeu a língua eslava. Com quatorze anos foi enviado para Constantinopla a fim de ser ali educado e foi companheiro do jovem imperador Miguel III. Naqueles anos foi introduzido nas diversas matérias universitárias, entre as quais a dialéctica, tendo como mestre Fócio. Depois de ter renunciado a um brilhante matrimónio, decidiu receber as ordens sagradas e tornou-se "bibliotecário" no Patriarcado. Pouco depois, desejando retirar-se em solidão, foi esconder-se num mosteiro, mas depressa foi descoberto e foi-lhe confiado o ensino das ciências sagradas e profanas, função que desempenhou tão bem que lhe foi atribuído o apelativo de "Filósofo". Entretanto, o irmão Miguel (que nasceu por volta de 815), depois de uma carreira administrativa na Macedónia, por volta do ano 850 abandonou o mundo e retirou-se à vida monástica no monte Olimpo na Bitínia, onde recebeu o nome de Metódio (o nome monástico devia começar com a mesma letra do nome de baptismo) e tornou-se hegúmeno do mosteiro de Polychron.
       Atraído pelo exemplo do irmão, também Cirilo decidiu deixar o ensino e foi para o monte Olimpo a fim de meditar e rezar. Contudo, alguns anos mais tarde (aprox. 861) o governo imperial encarregou-o de uma missão junto dos Khazares do Mar de Azov, os quais pediam que lhes fosse enviado um letrado que soubesse discutir com os judeus e com os sarracenos. Cirilo, acompanhado pelo irmão Metódio, esteve por muito tempo na Crimeia, onde aprendeu o hebraico. Ali procurou também o corpo do Papa Clemente I, que ali tinha estado exilado. Encontrou o seu túmulo e, quando retomou com o irmão o caminho do regresso, levou consigo as preciosas relíquias. Tendo chegado a Constantinopla, os dois irmãos foram enviados à Morávia ao imperador Miguel III, ao qual o príncipe morávio Ratislau tinha feito um pedido específico: "O nosso povo – dissera-lhe – desde quando rejeitou o paganismo, observa a lei cristã; mas não temos um mestre que seja capaz de nos explicar na nossa língua a verdadeira fé". A missão teve depressa um sucesso inaudito. Traduzindo a liturgia na língua eslava, os dois irmãos conquistaram uma grande simpatia da parte do povo.
       Mas isto suscitou a hostilidade em relação a eles da parte do clero franco, que tinha chegado precedentemente à Morávia e considerava o território pertencente à própria jurisdição eclesial. Para se justificar, em 867 os dois irmãos vieram a Roma. Durante a viagem pararam em Veneza, onde teve lugar um aceso debate com os defensores da chamada "heresia trilíngue": estes consideravam que houvesse só três línguas nas quais se podia licitamente louvar a Deus: a hebraica, a grega e a latina. Obviamente, os dois irmãos opuseram-se com vigor a esta posição. Em Roma Cirilo e Metódio foram recebidos pelo Papa Adriano II, que foi ao encontro deles em procissão para receber dignamente as relíquias de São Clemente. O Papa tinha compreendido também a grande importância da sua missão excepcional. De facto, desde meados do primeiro milénio os eslavos tinham-se instalado em grande número naqueles territórios situados entre as duas partes do Império Romano, a oriental e a ocidental, entre os quais já havia tensões. O Papa intuiu que os povos eslavos teriam podido desempenhar um papel de ponte, contribuindo assim para conservar a união entre os cristãos das duas partes do Império. Portanto, não hesitou em aprovar a missão dos dois Irmãos na Grande Morávia, aceitando e aprovando o uso da língua eslava na liturgia. Os livros eslavos foram colocados no altar de Santa Maria de Phatmé (Santa Maria Maior) e a liturgia em língua eslava foi celebrada nas Basílicas de São Pedro, de Santo André e de São Paulo.
        Infelizmente Cirilo adoeceu de modo grave em Roma. Sentindo aproximar-se a morte, quis consagrar-se totalmente a Deus como monge num dos mosteiros gregos da Cidade (provavelmente em Santa Praxedes) e tomou o nome monástico de Cirilo (o seu nome de baptismo era Constantino). Depois pediu com insistência ao irmão Metódio, que entretanto tinha sido consagrado Bispo, que não abandonasse a missão na Morávia e que voltasse entre aquelas populações. Dirigiu-se a Deus com esta invocação: "Senhor, meu Deus..., atende o meu pedido e faz com que o rebanho que me tinhas confiado se mantenha fiel a ti... Liberta-o da heresia das três línguas, reúne todos na unidade e faz com que o povo que escolheste seja concorde na verdadeira fé e na confissão recta". Faleceu a 14 de Fevereiro de 869.
       Fiel ao compromisso assumido com o irmão, no ano seguinte, 870, Metódio regressou à Morávia e à Panónia (hoje Hungria), onde encontrou de novo a violenta hostilidade dos missionários francos que o aprisionaram. Não desanimou e quando, em 873, foi libertado empenhou-se activamente na organização da Igreja, ocupando-se da formação de um grupo de discípulos. Foi por mérito destes discípulos que pôde ser superada a crise que se desencadeou depois da morte de Metódio a 6 de Abril de 885: perseguidos e postos na prisão, alguns destes discípulos foram vendidos como escravos e levados para Veneza, onde foram resgatados por um funcionário constantinopolitano, que lhes concedeu voltar aos países dos eslavos balcânicos. Acolhidos na Bulgária, puderam continuar a missão iniciada por Metódio, difundindo o Evangelho na "terra da Rus'". Deus, na sua misteriosa providência serviu-se assim da perseguição para salvar a obra dos santos Irmãos. Dela permanece também a documentação literária. É suficiente pensar em obras como o Evangeliário (perícopes litúrgicas do NovoTestamento), o Saltério,vários textos litúrgicos em língua eslava, nos quais trabalharam os dois Irmãos. Depois da morte de Cirilo, deve-se a Metódio e aos seus discípulos, entre outros, a tradução de toda a Sagrada Escritura, o Nomocânone e o Livro dos Padres.
       Querendo agora resumir o perfil espiritual dos dois Irmãos, deve-se registar antes de tudo a paixão com que Cirilo se aproximou dos escritos de São Gregório Nazianzeno, aprendendo dele o valor da língua na transmissão da Revelação. São Gregório tinha expresso o desejo de que Cristo falasse por meio dele: "Sou servo do Verbo, por isso me ponho ao serviço da Palavra". Querendo imitar Gregório neste serviço, Cirilo pediu a Cristo que falasse em eslavo através dele. E introduz a sua obra de tradução com a invocação solene: "Ouvi, vós todos, povos eslavos, ouvi a Palavra que vem de Deus, a Palavra que alimenta as almas, a Palavra que conduz ao conhecimento de Deus". Na realidade, já alguns anos antes que o príncipe da Morávia viesse pedir ao imperador Miguel III o envio de missionários à sua terra, parece que Cirilo e o irmão Metódio, rodeados por um grupo de discípulos, estavam a trabalhar no projecto de recolher dogmas cristãos em livros escritos em língua eslava. Surgiu então claramente a exigência de novos sinais gráficos, mais adequados à língua falada: nasceu assim o alfabeto glagolítico que, modificado sucessivamente, foi depois designado com o nome de "cirílico" em honra do seu inspirador. Foi um acontecimento decisivo para o desenvolvimento da civilização eslava em geral. Cirilo e Metódio estavam convencidos de que cada um dos povos não pudesse considerar que recebeu plenamente a Revelação enquanto não a tivesse ouvido na própria língua e lida nos caracteres próprios do seu alfabeto.
       Atribui-se a Metódio o mérito de ter feito com que a obra empreendida com o irmão não fosse interrompida bruscamente. Enquanto Cirilo, o "Filósofo", era votado à contemplação, ele era mais propenso à vida activa. Graças a isto pôde lançar as bases da sucessiva afirmação daquela à qual poderíamos chamar a "ideia cirilo-metodiana": ela acompanhou nos diversos períodos históricos os povos eslavos, favorecendo o desenvolvimento cultural, nacional e religioso. Era quanto já reconhecia o Papa Pio XI com a Carta apostólica Quod Sanctum Cyrillum, na qual qualificava os dois Irmãos: "Filhos do Oriente, bizantinos por pátria, gregos por origem, romanos por missão, eslavos pelos frutos apostólicos" (AAS 19 [1927] 93-96). O papel histórico por eles desempenhado foi mais oficialmente proclamado pelo Papa João Paulo II que, com a Carta apostólica Egregiae virtutis viri, os declarou co-Padroeiros da Europa juntamente com São Bento (AAS 73 [1981] 258-262). De facto, Cirilo e Metódio constituem um exemplo clássico do que hoje se indica com a palavra "inculturação": Cada povo deve inserir na própria cultura a mensagem revelada e expressar a sua verdade salvífica com a linguagem que lhe é própria. Isto supõe um trabalho de "tradução" muito empenhativo, porque exige a identificação de palavras adequadas para repropor, sem a atraiçoar, a riqueza da Palavra revelada. Disto os dois santos Irmãos deixaram um testemunho muito significativo, para o qual a Igreja olha também hoje para dele obter inspiração e orientação.