sábado, 25 de fevereiro de 2017

Domingo VIII do Tempo Comum - ano A - 26.02.2017

       1 – Um reino dividido não precisa de inimigos, destrói-se a si próprio. É uma imagem utilizada pelo próprio Jesus quando alguém sugere que Ele está possuído pelo demónio e que os milagres que realiza resultam desse poder demoníaco (cf. Mc 3, 22ss).
       Atravessamos ainda uma crise económico-financeira, sem fim à vista, pressupondo uma outra crise, de valores e de opções pela vida, pelas pessoas, pela dignidade humana. Como tem alertado o Papa Francisco, as pessoas, na sua fragilidade, tornam-se descartáveis a partir do momento em que nos colocam dificuldades, nos incomodam e "atrasam" a nossa vida, desde as crianças não nascidas até aos idosos esquecidos como capotes nos bengaleiros durante a primavera e verão; doentes e pessoas com deficiência passíveis de serem enquadrados em leis que "resolvam" o seu sofrimento (ou o nosso sofrimento e incómodo em vê-los sofrer!); com os refugiados e os medos ancestrais que tornem mais difícil a nossa vida e mais débil a nossa segurança, no meio do poderio económico e financeiro que estrangula pessoas, famílias e pequenas e médias empresas. Percentagens, lucros, precariedade no emprego e no trabalho, mão-de-obra barata ou escravizável, maior produtividade, olhando para números e abdicando das pessoas.
       O Bispo de Fátima, em reunião com os hoteleiros, na proximidade da Visita Apostólica do Papa Francisco a Fátima, por ocasião de Centenário das Aparições, pediu-lhes que fizessem de Fátima uma "casa de acolhimento, de ternura e de festa" e praticassem preços honestos, evitando inflações exageradas.
       O direito ao ganha-pão é louvável e o esforço para tal também. Os Santuários, festas e romarias, são propícios ao ajuntamento de grande número de pessoas, levando também à criação de serviços e ao desenvolvimento do comércio. O turismo religioso é defensável, promovendo uma cultura de tolerância, de direito à existência, mas também as tentações de aproveitamento desonesto. A vinda do Papa aumentará exponencialmente o número pessoas o que, só por si, gerará mais lucros para aqueles que ali ganham a vida sem necessidade de abusar das necessidades e/ou simplicidade das pessoas.
       2 – Contextualizamos o Evangelho com estas duas situações: a crise económico-financeira e a elevada inflação do comércio, da restauração e da hotelaria, em Fátima e nos arredores, por ocasião da Visita do Papa Francisco. Por aqui se vê que a invetiva de Jesus continua atual: ninguém pode servir a Deus e ao dinheiro, quando este não se obtém de forma justa, honesta, como fruto do trabalho, no respeito pela criação e pelas pessoas, para viver e valorizar tudo o que nos aproxima uns dos outros.
       Na Montanha soam claras a palavras de Jesus: «Ninguém pode servir a dois senhores, porque ou há de odiar um e amar o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro». Claro como a água. E continua Jesus: «Não vos preocupeis, quanto à vossa vida, com o que haveis de comer, nem, quanto ao vosso corpo, com o que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o alimento e o corpo mais do que o vestuário? Olhai para as aves do céu: não semeiam nem ceifam nem recolhem em celeiros; o vosso Pai celeste as sustenta. Não valeis vós muito mais do que elas?»
       Por momentos ficamos estupefactos! Como? Optamos pela ociosidade à espera que outros trabalhem para nós, à espera que a comida e o mais caiam do Céu? Deus vestir-nos-á? Alimentar-nos-á? Ou vamos andar todos nus como os homens das cavernas?
       Em nenhuma parte do Evangelho ouvimos Jesus a apelar à irresponsabilidade, à demissão, à ociosidade e à preguiça! Nem pouco mais ou menos. Entre outras expressões podemos ouvi-lo a dizer: dai-lhes vós de comer! Aquando das tentações, Jesus recusa-Se a transformar as pedras em pão, deixando claro que o pão é fruto do trabalho honesto e esforçado. Em todo o caso, o pão não é um fim em si mesmo! O dinheiro não é um fim em si mesmo! Os bens materiais não são um bem em si mesmo! O bem é a pessoa e todas as pessoas. O dinheiro, o trabalho, a riqueza, os bens materiais são um meio para que as pessoas vivam melhor, mais harmoniosamente, devem ser meios para aproximar, não para dividir. O que divide é diabólico. Muitas vezes o dinheiro, a riqueza, os bens materiais, as heranças, dividem, diabolizam as pessoas e as famílias, geram guerras e disputas, conflitos e retiram a saúde e o discernimento.
       No mundo em que vivemos e da forma como a sociedade está organizada precisamos de dinheiro, de bens materiais para vivermos com dignidade. O acesso à cultura e à educação, aos bens de consumo e à saúde, só são possíveis com dinheiro. É possível que algumas amizades também sejam influenciadas pelo estatuto socioeconómico. Mas o decisivo são as amizades puras, a saúde ou os cuidados e a atenção na doença, a família, a paz. O que nos torna humanos são os afetos, a ligação aos outros.
       O mais importante para Deus são as pessoas. E assim deve ser também para nós.

       3 – O dia-a-dia de um povo pobre, faminto, maltrapilho, com a dificuldade em sobreviver, tendo em conta a elevada carga de impostos, injustos, para o império, para as autoridades judaicas, para o Templo, para os cobradores de impostos, encontram nas palavras de Jesus não a desistência mas a confiança e o desafio àqueles que têm muito e sobretudo quando o muito que têm não resultou do esforço e do trabalho mas da opressão, da corrupção, do roubo.
       O Sermão da Montanha inicia com as Bem-aventuranças. Vejamos parte do comentário de São Tomás de Aquino: "Felizes (= Bem-aventurados) os que estão atentos às necessidades dos outros, porque serão mensageiros da alegria"; "Felizes os que sabem descansar e dormir sem procurar desculpas, porque chegarão a ser sábios". Estas duas bem-aventuranças de São Tomás remetem-nos para o proceder de Jesus e dos seus discípulos. Por um lado a partilha solidária. Somos responsáveis uns pelos outros. Os sofrimentos e carências dos outros dizem-nos diretamente respeito, pois em Cristo, são nossos irmãos. Por outro lado, o ser humano não é e não pode ser escravo do trabalho nem da riqueza. Há mais vida. Podemos matar-nos a trabalhar e perder a vida, esquecendo-nos daqueles que peregrinam connosco e que merecem o nosso olhar, a nossa atenção, o nosso tempo e a nossa ajuda, se for caso disso.
       «Quem de entre vós, por mais que se preocupe, pode acrescentar um só côvado à sua estatura? E porque vos inquietais com o vestuário?... Não vos inquieteis, dizendo: ‘Que havemos de comer? Que havemos de beber? Que havemos de vestir?’... Bem sabe o vosso Pai celeste que precisais de tudo isso. Procurai primeiro o reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais vos será dado por acréscimo».
       O Reino de Deus, e a sua justiça, implica cuidado por todos, opção preferencial pelos desvalidos, cura dos doentes, bênção para os prisioneiros do mal, pão e afeto para os famintos, água e vida para os sedentos. Com certeza que temos que nos preocupar em trabalhar, mas de tal forma que não hipotequemos a nossa vida ao futuro que só a Deus pertence. «Não vos inquieteis com o dia de amanhã, porque o dia de ama­nhã tratará das suas inquietações. A cada dia basta o seu cuidado». Vivamos hoje, com responsabilidade e consciência, certamente, mas gastando hoje a vida a favor dos outros, para que a vida nos seja favorável amanhã, para nós, diante do nosso próximo, na presença de Deus.
       4 – Na oração inicial da Missa pedimos ao Senhor, nosso Deus, "que os acontecimentos do mundo decorram para nós segundo os Seus desígnios de paz e a Igreja O possa servir na tranquilidade e na alegria". Daqui se infere o Evangelho, a Boa Nova que nos impele ao serviço, procurando traduzir para hoje a bênção, a paz e a alegria que nos vem de Deus.
       Na primeira leitura, o profeta faz eco dos vazios e das inquietações, em momentos de adversidade e chuva. O povo de Sião clama: «O Senhor abandonou-me, o Senhor esqueceu-Se de mim». A resposta de Deus é esclarecedora: «Poderá a mulher esquecer a criança que amamenta e não ter compaixão do filho das suas entranhas? Mas ainda que ela se esquecesse, Eu não te esquecerei». Em situações normais, uma Mãe liga-se eternamente ao filho, este é o amor maior que a liga ao mundo e à vida. Mas ainda que uma Mãe pudesse esquecer o fruto das suas entranhas, Deus não Se esquece de nenhum de nós.
       Nesta confiança, respondemos salmodicamente à Palavra de Deus: «Só em Deus descansa a minha alma, d’Ele me vem a salvação. Ele é meu refúgio e salvação, minha fortaleza: jamais serei abalado. Em Deus está a minha salvação e a minha glória, o meu abrigo, o meu refúgio está em Deus. Povo de Deus, em todo o tempo ponde n’Ele a vossa confiança, desafogai em sua presença os vossos corações».

       5 – Serviço, humildade e fidelidade ao Evangelho. São as notas que o Apóstolo Paulo tem vindo a sublinhar e que nos agrafam a Jesus e à Boa Nova da salvação.
       Paulo reafirma-se como discípulo missionário, servo de Cristo e administrador dos mistérios de Deus. «De nada me acusa a consciência, mas não é por isso que estou justificado: quem me julga é o Senhor. Portanto, não façais qualquer juízo antes do tempo, até que venha o Senhor, que há de iluminar o que está oculto nas trevas e manifestar os desígnios dos corações. E então cada um receberá da parte de Deus o louvor que merece».
       Paciência na espera, coragem da humildade, generosidade no tempo, para que Deus frutifique em nós e através de nós.

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (A): Is 49, 14-15; Sl 61 (62); 1 Cor 4, 1-5; Mt 6, 24-34.

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