IDE POR TODO O MUNDO
E ANUNCIAI O EVANGELHO A TODA A CRIATURA
«A Igreja não
cresce por proselitismo, mas por atração: por atração maternal, por esta oferta
de maternidade; cresce por ternura, por maternidade, pelo testemunho que gera
sempre novos filhos» (Papa Francisco)[1].
Não animador ou
monitor, mas transparência ou testemunha fiel de Jesus Cristo
1. Todo o discípulo missionário, enquanto
testemunha e anunciador do Evangelho, não pode ser um simples animador ou monitor, mas transparência ou
testemunha fiel da presença viva e operante do próprio Senhor no meio da
comunidade. O discípulo missionário só tem autoridade na medida em que é fiel a
Cristo e como Ele obediente, nada dizendo ou fazendo por sua conta e risco ou a
seu-bel-prazer. A vida do discípulo missionário não é da ordem da criatividade,
mas da fidelidade. Só pode dizer e fazer aquilo que, por graça, lhe foi dado
ouvir, aquilo que, por graça, lhe foi dado ver fazer. O discípulo missionário é
então também um contemplativo. É aqui que voltamos outra vez à configuração do
discípulo missionário com Cristo e à sua transfiguração em Cristo e por Cristo.
O discípulo missionário não é, portanto, aquele que vai apenas, com o relógio,
o mapa e a caixa de primeiros socorros na mão, em auxílio de alguém. O
discípulo missionário tem de passar do tempo do relógio e do mero auxílio para
o dom total de si. A tempo inteiro e corpo inteiro. Missionário é aquele que,
como Jesus e à maneira de Jesus, põe em jogo a própria vida, e não simplesmente
as coisas ou os adereços. Tudo, e não apenas o supérfluo. Sempre, e não apenas
um segmento de tempo. Em toda a parte, e não apenas na sua rua.
Missão
«total»: todos, tudo, sempre, em toda a parte
2. Vale a pena começar por receber um
extrato do chamado «segundo final» de Marcos, onde aparece inserida a frase que
nos indica o caminho para o ano pastoral de 2016-2017:
«16,14Em último lugar fez-se
ver aos Onze, enquanto estavam à mesa, e reprovou
a sua incredulidade e dureza de coração, porque não acreditaram naqueles que o tinham
visto ressuscitado. 15E disse-lhes: “Indo por todo o mundo, anunciai
o Evangelho a toda a criatura”. 16Quem
acreditar e for batizado, será salvo, mas quem não acreditar, será condenado. 17São
estes os sinais que acompanharão os que acreditarem: no meu nome, expulsarão demónios, falarão línguas novas, 18e,
se pegarem em cobras nas mãos e beberem veneno mortal, não lhes fará mal;
imporão as mãos aos doentes, e ficarão bem.
19O Senhor Jesus, depois de ter falado com
eles, foi elevado ao céu, e sentou-se à direita de Deus. 20Eles,
então, tendo saído, anunciaram o
Evangelho por toda a parte, enquanto
o Senhor cooperava e confirmava a Palavra com os sinais que a
acompanhavam» (Marcos 16,14-20).
3. Trata-se da última página do Evangelho de Marcos, certamente
tardia, talvez do séc. II, mas grandiosa e imponente, e cheia de referências
significativas para a vida cristã de qualquer tempo e lugar. Esta página fecha
o Evangelho de Marcos, condensa-o e encerra-o numa grande inclusão literária e
teológica através dos termos «anunciar», «acreditar» e «Evangelho», usados a
abrir o Evangelho (1,14-15) e a fechar o Evangelho (16,15-16). Mas o anúncio do
Evangelho a toda a criatura (16,15) reclama também o início da Escritura, a
página da Criação, com o ser humano a receber de Deus o mandato de dominar a
criação inteira (Génesis 1,26 e 28). É ainda nesse sentido de inclusão
literária e teológica com a Criação, que as cobras, uma das quais dominou então
o ser humano (Génesis 3,1-5), são agora dominadas (16,18), do mesmo modo que é o
bem (kalôs), em vez da cura, que
agora se estabelece sobre os doentes (16,18). Outra vez o eco intertextual da
Criação, onde, no texto grego dos LXX, o bem,
bom e belo (kalós) impregna por
completo a Criação inteira, atravessando-a por oito vezes (Génesis
1,4.8.10.12.18.21.25.31 LXX). No texto hebraico, é por sete vezes que soa esta
nota com o termo tôb, que passa o
mesmo significado de bem, bom e belo (Génesis 1,4.10.12.18.21.25.31). O «Senhor Jesus» (16,19), única menção em todos os Evangelhos, enche a
cena, quer para recriminar a nossa incredulidade e dureza de coração (16,14),
quer para continuar a manifestar a sua confiança em nós, dado que, não obstante
a nossa incredulidade, e, talvez por isso mesmo, insiste em enviar-nos e
acompanhar-nos na missão «total» do Evangelho que agora nos confia (16,15 e
20). Cai aqui por terra uma certa retórica de santidade, que falsamente defende
que só os santos são idóneos para a missão de anunciar o Evangelho! E ganham
espaço os que fracassaram, como os Onze e nós com eles e como eles, que
anunciam a Ressurreição de Jesus, que continua vivo e atuante no meio de nós, e
a prova somos nós, pois Ele mudou a nossa vida de fracassados e desistentes
para testemunhas fiéis e transparentes! E esta mudança operada em nós tem de
fazer parte do relato que fazemos do Evangelho.
4. Cinco temas enchem a página, o pátio, o átrio sempre
entreaberto do Evangelho: 1) a autoridade soberana e nova de Jesus assente, não
na distância e tirania, mas na proximidade e familiaridade; 2) a missão total a
nós confiada; 3) o mundo novo e bom, sadio e otimizado que brota da prática do
Evangelho; 4) o envolvimento de todos; 5) a Presença nova e sempre ativa e
comprometida do Ressuscitado connosco.
4.1. A soberania nova, próxima e familiar de Jesus fica
registada no facto de toda a operação ser realizada no «nome de Jesus» (16,17),
mediante envio seu (16,15), com a sua Presença cooperante (synergéô) (16,20) e confirmante (bebaióô) (16,20), o mesmo verbo da Confirmação sacramental (bebaíôsis). Etimologicamente, deriva do
verbo baínô, que significa «caminhar»,
e supõe terreno firme e sólido (bébaios)
sobre o qual se pode caminhar com destreza e segurança. É esta destreza e solidez
que a Confirmação confere aos confirmados. Sem esquecer nunca que firmeza e
solidez, em chão bíblico, remetem sempre para fidelidade e confiança no domínio
interpessoal. A não esquecer também, neste contexto, que só um verdadeiro
soberano confia a sua história e a sua missão a gente como nós, que só deu até
agora sinais de fraqueza e de pouca ou nula fiabilidade. Um grande tema bíblico
desde a Criação: a omnipotência de Deus como que limitada pela nossa liberdade,
concedendo-nos aqui a imensa dignidade de partilhar connosco a sua autoridade,
deixando também nas nossas mãos a capacidade de fazer surgir um mundo novo,
cheio de bem, de bondade e de beleza.
4.2. Esta missão total, que deve envolver «todos, tudo e
sempre» (Bento XVI, Mensagem para o 85.º Dia Missionário Mundial 2011), é retratada com tinta excecional em Marcos, ao usar as
expressões «indo por todo o mundo»
(16,15), «anunciai o Evangelho a toda a
criatura» (16,15), e «tendo saído, anunciaram por toda a parte» (16,20). É a missão total, e não por etapas. Jesus
não recomenda: «a começar pela rua tal, ou pela cidade tal…». Portanto, esta
missão total também não é para levar a cabo ao sabor das emergências (ver a
decisão de Jesus em Marcos 1,38-39; Lucas 4,42-43). A ventania do Pentecostes
ou o vento suavíssimo do Espírito deve levar alento a toda a criatura, da mesma
forma que a semente do Evangelho é para ser lançada por toda a parte, em todo o
tipo de terreno, como na parábola do semeador, sem qualquer estudo prévio de
rentabilidade.
Pensar, querer, ver,
falar, fazer bem, belo e bom
4.3. Mundo novo e bom, salvo, sadio e saudável, otimizado,
sem forças demoníacas e sem ponta de veneno. Esta ligação e eco intertextual das
narrativas da Criação faz ver a missão como nova criação, em que o homem, finalmente
transparência do Deus criador e senhor, sem raivas nem ódios, ciúmes e
violências, «domina» a terra e os animais, isto é, estabelece a mansidão, a
doçura da palavra e a harmonia sobre a terra (Génesis 1,26-31). Até a cobra
perde a astúcia e o veneno mortal que ostenta em Génesis 3,1-5, e mostra-se
mansa e sujeita ao domínio das mãos do homem. À luz da missão salutar e salvadora,
nenhuma criatura é portadora de veneno (cf. Sabedoria 1,14), e a doença é
vencida pela bênção que sai das mãos e do coração do missionário, outra vez à
imagem de Deus, que enche este mundo de bem
(kalôs LXX) (16,18), que é uma nota
que atravessa o texto da Criação, vincando ainda mais a inclusão literária e
teológica já atrás acenada. Note-se que, em vez da presença do bem, em situação de doença, seria de
esperar, não o advérbio bem (kalôs), mas o verbo curar, que se usa habitualmente em situações idênticas, dito com o
verbo therapeúô (cf. Mateus 4,24; 8,16;
10,1.8; Marcos 1,34; 3,10; 6,13; Lucas 4,40; 6,18b; 9,1.6) ou iáomai (Marcos 5,29; Lucas 6,18a.19; 9,2).
De notar que a nossa Eucaristia, que é com certeza a mais alta forma de oração,
catequese e evangelização, assenta as suas raízes mais fundas na bênção e em bendizer, sendo a sua expressão mais antiga «O cálice da bênção que bendizemos» (1 Coríntios 10,16). Celebrar a Eucaristia é, pois,
sempre um grande exercício de «bendizer», isto é, de dizer bem, e não mal, e
implica mudar a nossa vida toda da clave do mal para a clave do bem. O mal
divide. O bem une. Levar uma comunidade a celebrar a Eucaristia é sempre transmitir
aos seus membros uma nova cultura. Não de maledicência, mas de aprendermos a pensar, querer, ver, falar e fazer bem, belo e bom,
que é a fonte da comunhão.
4.4. Nós já sabemos, são
muitos os documentos a dizê-lo, que esta missão do anúncio do Evangelho de
Jesus compete a todos. É por natureza que
a Igreja é missionária, diz-nos a Decreto Conciliar Ad gentes, n.º 2, e «evangelizar constitui, de facto, a graça e a
vocação própria da Igreja, a sua identidade mais profunda», insiste Paulo VI,
na feliz Exortação Apostólica Evangelii
nuntiandi [1975], n.º 14. Por isso, «a pregação do Evangelho não é para a
Igreja um contributo facultativo, mas um dever que lhe incumbe» (Paulo VI, Evangelii nuntiandi, n.º 5; Bento XVI, Mensagem para o Dia Missionário Mundial,
2012. É a maneira de ser da Igreja, e é a nossa maneira de ser, dado que é a
sua e a nossa identidade, vocação e graça. Mas de
entre todos os Evangelhos, só esta página seleta de Marcos diz expressamente que
os belos e maravilhosos «sinais» que acompanham o anúncio do Evangelho são
realizados por todos os que acreditam (Marcos 16,17-18). Esta extraordinária
«democratização» das maravilhas operadas por Deus por intermédio de todos os que
acreditam serve para datar este texto do século II. No século I, estes
prodígios estavam confinados aos Apóstolos, e, a partir do século III, será o
clero o seu proprietário. Magnífico texto este, que põe todo o povo de Deus a
realizar maravilhas! Portanto, queridos irmãos e irmãs, sede o que sois, sempre
e em toda a parte, e não deixeis por mãos e corações alheios, as maravilhas do
Evangelho que Deus vos dá para vós realizardes! É este o combustível do
«Evangelho da alegria», que Deus deposita largamente no coração de todos os seus
filhos e filhas, para consolação nossa e de todos os nossos irmãos e irmãs.
4.5. Chegados aqui, à última página do Evangelho de Marcos,
ainda podemos verificar dois gestos opostos e significativos. Jesus terminou o
seu caminho, é elevado ao céu, e senta-se à direita de Deus (16,19), sinal de
preeminência e de bênção. E os discípulos de Jesus, que têm agora o mundo
inteiro pela frente, levantam-se, saem, e anunciam o Evangelho (16,20). «Sair»,
hebraico yatsa՚, é o verbo clássico
do êxodo, mas é também, de forma muito significativa, o verbo do nascimento.
«Sair de si» é um dos dinamismos mais poderosos do Evangelho, que o Papa
Francisco lembrou e pediu à Igreja (Evangelii
gaudium [2013], n.os 20.23.27.97.259.261. A Evangelização, que implica este dinamismo, continua a
ser a tarefa central e sempre nova dos discípulos de Jesus de todos os tempos. «A
Igreja existe para evangelizar» (Evangelii
nuntiandi [1975], n.º 14). Fica ainda claro que a Ascensão de Jesus não o
retira do nosso convívio, pois Ele continua connosco, cooperando e confirmando
a missão da Evangelização que nos confiou.
Encontrar Jesus: sem
Ele, todos os caminhos estão fechados
5. Aquando da escolha de Matias para «a diaconia
(ou serviço) do apostolado» abandonada por Judas (Atos 1,25), Pedro pronuncia
estas palavras indicativas:
«1,21É necessário, pois, que, dos homens que vieram
connosco durante todo o tempo em que entrou e saiu à nossa frente o Senhor
Jesus, 22tendo começado desde o Batismo de João até ao dia em que
Ele foi arrebatado diante de nós, um destes se torne connosco testemunha da sua
Ressurreição» (Atos 1,21-22).
Nas palavras de Pedro, «o serviço do apostolado»,
que consiste em tornar-se testemunha transparente e credível da Ressurreição do
Senhor Jesus, requer, de todos aqueles que a ele se venham a dedicar, três
condições fundamentais: 1) ter feito todo o caminho connosco, e sempre atrás do
Senhor Jesus; 2) atrás do Senhor Jesus traduz a atitude do discípulo: sempre
com o Mestre; nunca, porém, à frente do Mestre, mas seguindo-O sempre de perto
no caminho; 3) o caminho tem um começo e um termo assinalados, sempre com
referência ao Senhor Jesus: desde o Batismo até ao dia da Ascensão diante de
nós. Bem assimiladas estas palavras de Pedro, é fácil compreender que é a
familiaridade com Jesus que faz dos discípulos de ontem e de hoje mensageiros
autênticos. Portanto, também hoje, os verdadeiros mensageiros do Evangelho serão
aqueles a quem foi dada a graça de construir uma verdadeira familiaridade com
Jesus, que chama aqueles que Ele quer, que os faz (verbo de criação), para
estarem com Ele, e os enviar a anunciar o Evangelho (cf. Marcos 3,13-14).
6. Bem nos recordou o Papa Bento XVI, em
missão Apostólica entre nós em maio de 2010, na homilia proferida no Porto (14
de maio): «Tudo se define a partir de Cristo, quanto à origem e à eficácia da
missão». E deixou este desabafo: «Quanto tempo perdido, quanto trabalho adiado,
por inadvertência deste ponto!». Uma vez encontrados por Cristo, não nos
podemos mais desencontrar, pois é Ele que as pessoas nos pedem (cf. João
12,21), e, sem Ele, nada podemos fazer (cf. João 15,5). Temos mesmo de o
procurar até o encontrar (cf. Lucas 2,44-46). Mas também Ele vem à nossa
procura junto ao poço de Jacob (cf. João 4,1-42), ou nos caminhos de Emaús (cf.
Lucas 24,13-35), ou de Damasco (Atos 9,1-19; 22,1-21;
26,2-23; Filipenses
3,12), ou quando estamos descrentes e acomodados (cf. Marcos 16,14-20). Recolhendo
outra vez o bom ensinamento de Bento XVI, secundado por Francisco, é necessário
compreender bem, compreender até ao coração, que «no início do ser cristão, não
há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento,
com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo»
(Deus caritas est [2005], n.º 1; Evangelii gaudium [2013], n.º 7). Mas é
preciso compreender também que este lume novo aceso por Jesus sobre a praia
(cf. João 21,9), não é para o deixarmos apagar e reduzir a cinzas. É para
transportar com carinho no coração ou na concha da mão, vivendo diariamente com
este lume dentro, hitlahabut, como dizem os hebreus, com uma chama dentro. E
depois, é preciso apegar a outros este lume. Ou, lembrando os bons ensinamentos
de São João Paulo II: «Quem
verdadeiramente encontrou Cristo, não pode guardá-l’O para si; tem de O
anunciar» (Novo millennio ineunte [2001],
n.º 40). E o Sínodo sobre a Nova Evangelização para a transmissão da fé cristã,
realizado em outubro de 2012, veio reafirmar que a fé não se decide com a
invenção, uso e divulgação de novas estratégias, mas «na relação que
instauramos com a pessoa de Jesus» (cf. Lineamenta,
n.º 2; Instrumentum laboris, n.º 39).
Uma comunidade que seja capaz de mostrar o quanto se alimenta e é transformada
pelo encontro com o Senhor Ressuscitado é o melhor lugar para comunicar a fé.
Saber Jesus com
«um coração que vê»
7. São Paulo, que Bento XVI apontou como «o maior
missionário de todos os tempos» (Mensagem para o 46.º Dia Mundial de Oração
pelas Vocações, 2008), e Paulo VI propôs como «modelo de cada Evangelizador» (Evangelii nuntiandi [1975], n.º 79),
confessa que, no início da sua vida nova de seguidor de Jesus Cristo, está o
facto imprevisível e irresistível de ter sido agarrado (katelêmphthên) por Jesus Cristo (Filipenses 3,12). Foi assim, nesta
luta desigual (katelêmphthên, aor.
pass. de katalambáno, supõe uma luta),
que Paulo chegou ao sublime conhecimento de Jesus Cristo, seu Senhor, e do que
vale a pena fazer e desfazer na vida (Filipenses, 3,8). Dada a excelência do
conhecimento novo que o tomou de assalto e o levou a mudar tudo na sua vida,
Paulo confessa com convicção e ousadia: «Decidi não outra coisa saber (eidénai) entre vós senão Jesus Cristo, e este crucificado (estaurôménon: part. perf. pass. de stauróô)» (1 Cor 2,2). Em termos
gramaticais, eidénai é o infinito
perfeito do verbo oîda, raiz id-, que, pelo seu uso semântico, também
significa «ver», o que implica que só se conhece ou sabe bem o que se vê. Trata-se,
todavia, de um conhecimento novo e de uma visão nova. Não se trata tanto
daquele trabalhoso processo de conhecimento, que é próprio da filosofia, e que
o verbo ginôskô ilustra, mas
tão-pouco deriva da simples visão ocular. Na verdade, não se vê apenas com os
olhos. «Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os
olhos», escreveu Saint-Exupéry. Há um conhecimento,
um saber e uma visão mais profunda que envolve e impregna a pessoa toda e a
vida toda. Corresponde talvez à expressão feliz «um coração que vê», usada por Bento
XVI na Carta Encíclica Deus
caritas est [2005], n.º 31, e deixa entender, à maneira do Papa Francisco,
que «a fé não olha só para Jesus, mas leva-nos a ver do ponto de vista de
Jesus, com os seus olhos: é uma participação na sua maneira de ver» (Carta
Encíclica Lumen fidei [2013], n.º
18). Francisco volta a esta temática de «O olhar de Jesus», que tudo enche de
beleza, na sua Carta Encíclica Laudato
Si’ [2015], n.os 96-100.
8.
Não se sabe, aprende e ensina Jesus, estabelecendo e cumprindo programas mais
ou menos de cariz escolar. Não se aprende Jesus pelo caminho do «amor da
sabedoria», mas pelo caminho da «sabedoria do amor». A ciência de Jesus é a
sabedoria de um «amor crucificado», que mostra que, na base da minha existência
nova, está Jesus que morreu por mim por amor, sem levar em conta os meus
méritos, que os não tenho. Nem eu nem tu nem ninguém. Por isso é que, para
Paulo, saber Jesus é saber Jesus crucificado por amor, isto é, na ação de dar a
vida por amor, para sempre e para todos. Em Jesus, Paulo vê um amor novo, não
apenas devido a um pequeno grupo de amigos, mas a todos, bons e maus, também
aos inimigos. Este «amor crucificado», a todos devotado, é uma forma nova de
viver, e rebenta as paredes dos nossos pequenos grupos de amigos, em que tantas
vezes vivemos entrincheirados. A paróquia, que deve revestir-se desta nova
fisionomia do amor, tem de ser uma comunidade acolhedora e aberta, «em saída». Vislumbra-se
daqui a imagem da Igreja e da paróquia que o Papa João Paulo II belamente
desenhou na preparação do Grande Jubileu do ano 2000, e que Bento XVI evocou em
2005: «Paróquia, procura-te a ti mesma e encontra-te
a ti mesma fora de ti mesma». E o Papa Francisco não se cansa de repetir que
«há duas imagens de Igreja: a Igreja evangelizadora, que sai de si mesma, e a
Igreja mundana e autorreferencial, que vive em si, de si e para si».
Anunciar Jesus:
uma necessidade que se me impõe
9. «Evangelizar
não é para mim um título de glória, mas uma necessidade
que se me impõe desde fora. Ai de mim se não Evangelizar!» (1 Coríntios 9,16).
Portanto, no próprio dizer de Paulo, anunciar o Evangelho impõe-se-lhe, mais do
que como uma paixão, como uma necessidade.
Paulo anuncia convictamente a notícia da Ressurreição, e diz que o faz como se
de uma necessidade se tratasse. E
ilustra-o com o relato da sua vida. Mas porque é que este anúncio há de ser,
para Paulo, uma necessidade? É uma necessidade porque Paulo considera o
acontecimento da Páscoa de Jesus Cristo como único, singular e universal, que o
afetou radicalmente na sua maneira de ser homem. A prova é que Paulo mudou tudo
na sua vida. Mudou, ou foi mudado. É por isso que Paulo anuncia convictamente a
força (dýnamis) de Cristo Crucificado e Ressuscitado (cf. Filipenses
3,10). Mas é ainda uma necessidade
porque Paulo pressente que, se não anunciar o Evangelho, a sua vida se
desmorona ou arruína, porque está construída sobre a areia e será facilmente
arrastada por qualquer vendaval (cf. Mateus 7,26-27). É
por isso que Paulo, quando contempla a riqueza de Cristo e do Evangelho,
considera tudo o resto como lixo (Filipenses 3,8).
10. Já sabemos que a cultura
de hoje não transmite a fé, mas a liberdade religiosa. Se há umas décadas atrás
não se podia não ser cristão, hoje pode vir-se a sê-lo, mas ser cristão hoje já
não é visto como necessário para
alguém viver humanamente bem a sua vida. É por isso que voltamos às coordenadas
de São Paulo, e precisamos urgentemente de passar de uma fé de mera convenção
para uma fé de entranhada convicção, assente em pessoas e comunidades que
sintam a necessidade de encontrar,
saber e anunciar Jesus Cristo. Pessoas radicalmente afetadas por Jesus Cristo. Pessoas
e comunidades que sintam Jesus Cristo desde as entranhas. No sentido deste único necessário, impõe-se que renovemos
todas as coisas. Diz bem o Documento de
Aparecida [2007] que «uma paróquia renovada multiplica as pessoas que
realizam serviços e acrescenta os ministérios» (n.º 202), para que todos se
sintam «fraternalmente acolhidos, valorizados, visíveis e eclesialmente
incluídos», «membros de uma comunidade eclesial e corresponsáveis pelo seu
desenvolvimento» (n.º 226), podendo dizer com alegria: «A Igreja é a nossa casa!
Esta é a nossa casa!» (n.º 246).
11. Quer isto dizer, amados
irmãos e irmãs, que, nas nossas paróquias, não pode haver cristãos, tipo «tanto
se lhes dá como se lhes deu». Eu sei que há nas nossas paróquias catequistas,
grupos corais, acólitos, leitores, grupos de jovens, ministros da comunhão,
grupos sócio caritativos, zeladoras, sacristães, irmandades, associações
diversas, movimentos diversos, conselhos para os assuntos económicos, conselhos
pastorais... A todos deixo a minha gratidão. Mas também sei que há ainda muitos
cristãos de convenção, ainda não radicalmente afetados por Jesus Cristo.
12. A listagem que fiz não
pode servir para nos deixar descansados, porque já estamos inseridos em alguma
missão. Nunca nos podemos esquecer de que, de acordo com o apelo do Papa
Francisco, na Evangelii gaudium, «o objetivo destes
processos participativos não há de ser principalmente a organização eclesial,
mas o sonho missionário de chegar a todos» (n.º 31). A primeira palavra do lema
da nossa Diocese para este Ano pastoral continua a ser: «IDE!».
Transforming
Mission
13. Para isso, é preciso dar
um colorido novo a tudo o que já existe. E é preciso que todos os que se dizem discípulos
de Jesus Cristo, e que já frequentam as nossas paróquias, sejam transformados
em verdadeiros Evangelizadores. É necessário que os grupos já existentes
aumentem em quantidade e qualidade. É urgente fazer surgir novos grupos. Por
exemplo, grupos de Evangelização, de acolhimento, de escuta, de oração, de
visitação, de leitura, de estudo e reflexão, de caridade, escolas ou
laboratórios de vivência e transmissão da fé.
14. A
Evangelização é o nosso verdadeiro gerador de alegria e de energia. Ninguém pode
ser apenas mero espectador ou recipiente do Evangelho. Esta atitude gera
cansaço e desistência, falência a curto ou médio prazo. O Papa Francisco está
outra vez cheio de razão quando escreve, na Exortação Apostólica Evangelii gaudium [2013] que é
necessário «avançar no caminho de uma conversão pastoral e missionária, que não
pode deixar as coisas como estão», e pede à Igreja que se coloque em «estado
permanente de missão em todas as regiões da Terra» (n.º 25). E confia a cada
um, um TPC, esclarecendo que «Há uma forma de pregação que nos compete a todos
como tarefa diária: é cada um levar o Evangelho às pessoas com quem se
encontra» (n.º 127). O
anúncio do Evangelho, o anúncio essencial, o mais belo, o mais importante e o
mais necessário (n.º 35), que soa
«Este Jesus Cristo, crucificado e ressuscitado, é o único Salvador» (cf. Atos
2,23-24.32.36; 3,15-16; 4,10; 5,30-31; 10,39-40; 13,28-30; 17,31; 25,19), é «a primeira caridade» para o mundo (n.º
199; Novo millennio ineunte [2001],
n.º 50), e nunca nos devemos esquecer que só «a caridade das obras garante uma
força inequívoca à caridade das palavras» (Novo
millennio ineunte, n.º 50). Se estamos perante o fundamental, então é
necessário, como refere o Documento de
Aparecida, que «Nenhuma comunidade se deve considerar isenta de entrar
decididamente, com todas as forças, nos processos constantes de renovação
missionária e de abandonar as estruturas ultrapassadas que já não favoreçam a
transmissão da fé» (n.º 365).
15. Para esta experiência viva de missão,
de oração e de alegria, convoco todos os diocesanos da nossa Diocese de Lamego:
sacerdotes, diáconos, consagrados, consagradas, fiéis leigos, pais, mães, avôs,
avós, famílias, jovens, crianças, catequistas, acólitos, leitores, agentes
envolvidos na pastoral, membros dos movimentos de apostolado. A todos peço a
graça de promoverem mais encontros de oração, reflexão, formação, perdão,
partilha e amizade. Mais. Mais. Mais. A todos peço a dádiva de uma mão de mais
amor a todos os irmãos e irmãs que experimentam dificuldades e tristezas, e
também àqueles que junto de nós vierem procurar a esmola do refúgio. Mais.
Mais. Mais. A todos peço que experimentemos a alegria de sairmos mais de nós ao
encontro de todos, para juntos celebrarmos o grande amor que Deus tem por nós e
sentirmos a alegria da sua misericórdia. Que cada um de nós sinta como sua
primeira riqueza e dignidade a de ser filho de Deus com muitos irmãos à sua
volta. E para todos imploro de Deus a sua bênção, e de Maria, no centenário das
suas aparições em Fátima, a sua proteção carinhosa e maternal.
Dois mil e dezassete,
Ano da Graça, da Misericórdia e da Alegria,
Em que todos os caminhos vão dar a Fátima,
À Cova da Iria,
A Maria.
Titubeantes ou firmes,
À chuva e ao frio,
Vão os teus filhos,
Desfiando o rosário,
Como se fosse o abecedário
Das suas vidas doridas.
Vão ter contigo, Mãe,
Alívio das suas dores,
Atiram-te flores
Com gestos de ternura.
Sabem que acolhes com doçura
As suas preces tecidas de lã pura,
À mistura
Com uma lágrima de amor
Na despedida.
Abençoa, Senhora e Mãe querida,
Estes teus filhos e filhas,
E recolhe-os no manto
Branco
Das tuas maravilhas.
Lamego, 1 de outubro de 2016
+ António, vosso bispo e irmão
[1] Una Chiesa accogliente con le porte aperte. Discurso de abertura no Congresso pastoral da Diocese de Roma, in Avvenire, 18 de Junho de 2014, p. 16.
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