sábado, 2 de abril de 2016

Domingo da Divina Misericórdia - ano C - 3 de abril

       1 – A plenitude da misericórdia divina é visualizável no mistério da Encarnação, Deus cabe na palma da mão, cabe no meu e no teu coração. A omnipotência reduz-Se à pequenez e à finitude. Deus, em Jesus Cristo, percorre a história, podemos encontrá-l'O, segui-l'O, acohê-l'O em nossa casa, rejeitá-l'O, persegui-l'O e até matá-l'O. Faz-Se Caminho para nós e entra nos caminhos do tempo, vem ao nosso mundo. O mistério da Páscoa, morte e ressurreição de Jesus, condensa e evidencia em definitivo a misericórdia de Deus que Se ajusta à nossa fragilidade. O coração de Deus compadece-se da nossa miséria e envolve-nos no Seu amor. Já tínhamos visto em quinta-feira santa, como Jesus Se ajusta ao ser humano, ajoelhando-se para nos servir, lavando-nos os pés. Olha-nos a partir de baixo, para nos elevar. Em Sexta-feira Santa, Jesus leva até ao fim o Seu amor por nós, não vacilando, apesar de tanta dor. A Cruz é pesada e pesada é a traição e o abandono dos amigos, e como amargas são as trevas que quase O impedem de ver o Pai. No final, entrega-Se, por mim e por ti, por todos.
       Com a Páscoa vem uma enxurrada de vida nova. A morte não tem mais a última palavra. Esta é de Deus, é da vida, é do Amor. Jesus regressa trazendo-nos, na expressão de Bento XVI, a vastidão do Céu. Um vislumbre de luz que incendiou o mundo. Assim é a Luz da Fé, à minha luz, a luz do outro, e mais luz, como a chama de um isqueiro num estádio de futebol, quase invisível, mas logo que se acendem dezenas, centenas, milhares, o estádio fica todo iluminado. O encontro com Jesus ressuscitado, a experiência da misericórdia de Deus na nossa vida, impele-nos a sermos luz uns para os outros. Com a nossa luz podemos guiar outros para a luz de Cristo e acender a luz em outros!
       São João Paulo II quis que este segundo domingo de Páscoa fosse considerado sob o prisma da misericórdia, acentuando a Páscoa como expoente máximo da compaixão de Deus pela humanidade. Abaixa-Se para nos elevar, como a Mãe que se agacha para pegar o seu filho ao colo!
       2 – Páscoa de Jesus Cristo. Sepulcro sem corpo e sem vida. A vida está além do sepulcro. Não é um teatro em que se possa dizer que a vida está aquém das cortinas, contudo está aquém do sepulcro e além da morte. Jesus ressuscitou. A vida germina de novo em abundância. Deixou-Se matar, e Deus Pai ressuscitou-O, agora deixa-Se ver. Deixa-Se encontrar novamente, deixa-Se perceber ao nosso olhar e ao nosso coração. Não é fantasma, é Ele mesmo. Traz as marcas da crucifixão e a mesma mensagem: «A paz esteja convosco. Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós».
       Na tarde daquele Primeiro Dia, nova criação, Jesus volta a colocar-Se no MEIO, congregando, unindo, formando comunidade, é o ELO mais forte, sem o Qual não existe comunidade, mas medo e atrofiamento. Não é um corpo que foi reanimado, mas uma forma totalmente nova de Se manifestar. É tanta a LUZ que encandeia num primeiro momento. A aparição assusta, os gestos e as palavras, e as marcas de cumplicidade, esclarecem e comprometem. A morte tinha sido violenta e abrupta a separação. Já havia rumores. Algumas mulheres afirmavam que Ele tinha ressuscitado! Para os discípulos não passam de rumores que só deixam de o ser se puderem comprovar. E eis que vem Jesus, como sempre o havia feito, e os centra à Sua volta, mas logo enviando-os, com uma missão específica: «Recebei o Espírito Santo: àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados; e àqueles a quem os retiverdes ser-lhes-ão retidos». A misericórdia divina tem novos intérpretes. Os discípulos são os braços, as pernas, as mãos, o coração de Jesus para o mundo das pessoas.
       3 – Mas como sermos testemunhas se não estávamos quando Jesus apareceu? O envio também é extensível a nós, ou só àquele grupo restrito? É possível ser enviado sem a comunidade?
       O Espírito sopra onde quer. Não podemos encerrar Deus nos nossos esquemas mentais nem dentro das portas que Lhe fixamos. Porém, Deus quer-nos à volta da mesma mesa, pois é ao mesmo Reino que nos chama. Quando estamos alheados, com os pés e com o coração distantes dos outros, será mais difícil reconhecermos a presença de Jesus, pois esta enlaça-nos, une-nos, irmana-nos. Jesus morre na Cruz para nos salvar, não Se salva a Si mesmo, mas a nós. Se Deus é o mesmo, Pai-nosso, se Jesus está no Meio, só estando juntos poderemos, verdadeiramente, testemunhá-l'O.
       Tomé, chamado Dídimo, isto é, Gémeo, nosso irmão gémeo, lembra-nos que a fé não é um dado adquirido, mas é procura constante para encontrar com Jesus, nas variadas situações da vida. Naquela tarde, Tomé não estava. Ouve o testemunho dos outros que viram Jesus. É um dizer indireto, em segunda mão. Tomé precisa de ver e de tocar. A fé não é mera abstração intelectual. Envolve-nos mental, afetiva e racionalmente. Oito dias depois, Jesus volta a colocar-se no MEIO deles, com Tomé presente. As marcas da paixão podem ver-se no Corpo de Jesus, e novamente a mensagem de sempre: a paz esteja convosco. É hora de Tomé ser surpreendido por Jesus: «Põe aqui o teu dedo e vê as minhas mãos; aproxima a tua mão e mete-a no meu lado; e não sejas incrédulo, mas crente». Tomé encontra-se com Jesus e ao vê-l'O confessa: «Meu Senhor e meu Deus!».
       Não se pense que a incredulidade de Tomé foi assim tão diferente da dos outros discípulos. Eles tinham escutado rumores, mas só quando Jesus lhes apareceu é que acreditaram. Não estava na primeira vez, porém, quando Jesus o encontra, Tomé acredita.
       Contudo, o anúncio é crucial para a transmissão da fé. A fé chega-nos através da comunidade, com Jesus ao centro, e pelo testemunho daqueles que fizeram a experiência de encontro com Jesus. Diz-nos Jesus: «Porque Me viste acreditaste: felizes os que acreditam sem terem visto».
       4 – A Ressurreição de Jesus não é um acontecimento sensível, empírico, mas deixa marcas profundas na história. ONZE apóstolos, assustadiços, medrosos, fechados a sete chaves com medo que lhes suceda o mesmo que ao Mestre da Misericórdia. A experiência nas últimas horas de vida de Jesus foram avassaladoras. Nenhum deles estava preparado para aquele desfecho. Foi um descalabro: todos abandonaram o Mestre da Docilidade. Pedro negou-O publicamente. Judas traiu-O e precipitou o desfecho aguardado. Afastam-se de Jerusalém.
       Em pouco tempo os discípulos estão de volta. O encontro com o Ressuscitado abre portas e janelas e eles saem a testemunhar Jesus em todos os ambientes e em toda a parte. "Pelas mãos dos Apóstolos realizavam-se muitos milagres e prodígios entre o povo. Unidos pelos mesmos sentimentos, reuniam-se todos no Pórtico de Salomão... Uma multidão cada vez maior de homens e mulheres aderia ao Senhor pela fé, de tal maneira que traziam os doentes para as ruas e colocavam-nos em enxergas e em catres, para que, à passagem de Pedro, ao menos a sua sombra cobrisse alguns deles. Das cidades vizinhas de Jerusalém, a multidão também acorria, trazendo enfermos e atormentados por espíritos impuros e todos eram curados".
       É tempo de os discípulos imitarem Jesus, anunciando a Boa Nova aos pobres, curando os doentes, libertando os oprimidos pelos muitos demónios que impedem de viver a bem com os outros.

       5 – Como tinha garantido, Jesus não estará ausente da vida dos Seus discípulos e da vida da comunidade. Ele está no MEIO e é a partir do Meio que nos une a todos, como irmãos, apesar e além das diferenças e das características específicas.
       No Apocalipse, João ressalva a presença e a proteção de Jesus: "No dia do Senhor fui movido pelo Espírito e ouvi atrás de mim uma voz forte, semelhante à da trombeta… Voltei-me e vi alguém semelhante a um filho do homem... Quando o vi, caí a seus pés como morto. Mas ele poisou a mão direita sobre mim e disse-me: «Não temas. Eu sou o Primeiro e o Último, o que vive. Estive morto, mas eis-Me vivo pelos séculos dos séculos e tenho as chaves da morte e da morada dos mortos. Escreve, pois, as coisas que viste, tanto as presentes como as que hão de acontecer depois destas».
       Com a mesma fé que libertou os discípulos das cadeias do medo e da morte, cofiemo-nos ao "Deus de eterna misericórdia" que reanima a fé do Seu povo na celebração anual das festas pascais, para que aumente em nós os dons da Sua graça, "para compreendermos melhor as riquezas inesgotáveis do Batismo com que fomos purificados, do Espírito em que fomos renovados e do Sangue com que fomos redimidos".
       Renovados em Cristo, configurados à Sua morte e ressurreição, pelo Espírito Santo, tornemo-nos obreiros da misericórdia divina nos nossos ambientes, em casa, na família, no trabalho, com os amigos e vizinhos, nos momentos de descontração e lazer, na alegria e na festa, no sofrimento e no luto, e a todos comuniquemos confiança e paz, carinho e ternura.

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia: Atos 5, 12-16; Sl 117 (118); Ap 1, 9-11a. 12-13. 17-19; Jo 20, 19-31.

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